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Foto do escritorIrina Marques

O Caminho de Santiago - Minhoto Ribeiro XIV

Na manhã seguinte acordamos muito cedo e estávamos preparadas para a jornada que vinha pela frente. Quando acordei, custou-me muito levantar, o peso dos dias cada vez mais se fazia sentir nos pés. Ter levado calçado confortável ajudou bastante, mas eram quatro dias a andar quase sem parar, já não reconhecia os meus pés apesar de todas as noites tratar deles - massageá-los, furar bolhas e tratar delas. Porque o caminho não é apenas as vistas e as coisas boas que nos acontecem/aparecem, existe uma componente muito penosa também. O resto do corpo estava a portar-se bem, não tinha nenhuma dor em particular, o peso da mochila não se estava a fazer notar nas costas e as pernas, cada dia as sentia mais fortes. Mesmo que o cansaço me começasse a invadir os pensamentos sem pedir licença, a parte mental ajudava bastante - o caminho era feito de ambas as componentes - corpo e “alma”, elas teriam que se entender nas suas batalhas internas. Foi um aprendizado muito grande, mas creio que constantemente já estou habituada a estas batalhas... A procura interna por força de vontade e tomar a atitude é algo que por norma procuro sempre fazer - vontade e iniciativa - creio que as mentes mais criativas possuem um pouco este tipo de interiorizações, sabemos bem identificá-los, não há quem batalhe mais com a sua própria mente que pessoas que passam o dia debruçadas sobre assuntos da psicologia, sociologia, filosofia e comportamentos sociais, quem cria arte tem as suas próprias batalhas internas. Não deixo de fora as restantes pessoas, cada uma têm sua própria forma de batalhar com seus sentimentos internos, algumas pessoas apenas pensam demais e, creio pertencer a essas pessoas.

Mas havia algo que o caminho me estava a ensinar, deixar para trás alguns pensamentos, quando não se obtém resposta o melhor é seguir em frente, se todas as outras pessoas seguem e não pensam nisso tinha que haver forma de conseguir fazer o mesmo. E, entretanto, surgiu-me à cabeça todas as pessoas que havia cruzado no caminho - todos os bons momentos - e aquelas pessoas que nunca mais na vida iria ver, mas que me tinham proporcionado uma boa conversa, um relaxar, um acto de generosidade, uma simpatia... A vida continua com esses momentos, eles ficaram marcados no meu coração e daí, até deixar esses registos nestas minhas "memórias", porque foram pessoas realmente importantes no meu percurso. Por vezes as situações mais inesperadas são as que nos marcam mais, mas só quando olhamos para trás e fazemos uma reavaliação é que sentimos isso. Sempre fui uma pessoa de gostar de fazer surpresas aos outros, poucas vezes me surpreendem e quando o fazem fico sem jeito porque não estou habituada, o caso da D. Fina e do senhor Jesuz Gonçalez foi um deles, o gesto de me oferecer uma garrafa de água para mim significou tanto, mas tanto que foi equiparável a situações muito marcantes na minha vida.



Às sete da manhã descemos da pensão rumo à sala do pequeno-almoço e já íamos preparadas para a nova aventura que teríamos pela frente. Despedimo-nos da senhora que nos atendeu, pusemos as mochilas às costas e partimos para o novo trajecto - Soutelo de Montes até ao Foxo, que seriam cerca de 27.5 quilômetros. Tínhamos que cumprir o caminho no dia estipulado, novamente iríamos andar por povoações que não possuíam albergues nem hostels, para pernoitarmos teria que ser no Foxo e mesmo assim, não era garantido que teríamos um local onde dormir, por isso, tínhamos que chegar cedo para tratar desse assunto.

Estava tudo muito calmo de manhã, ainda de ouvir o chilrear dos pássaros nas árvores a acordarem com o alvorecer e a aldeia encontrava-se em silêncio profundo. As nuvens ameaçavam, mas por outro lado dissipavam-se no horizonte, sabíamos que não ia chover. Novamente, como já tínhamos feito nos caminhos anteriores, fizemos etapas dentro do percurso, desta vez seria: Forcarei (que ficava a 10.20 quilômetros); Salauzóns (que seriam 13.20 quilômetros e o Foxo (mais 4.10 quilômetros).


Seguimos por dentro de Soutelo dos Montes e fomos para uma estrada de asfalto até chegarmos a um cruzamento onde viramos para Fontela. O caminho foi sempre feito por estradas e caminhos em paralelo a entrar no meio de ambientes mais rústicos de com arvoredo.

Na aldeia de Fontela seguimos por uns caminhos de com estradas pavimentadas e outros de terra entre muros que delimitavam casas e campos… Esta parte do caminho foi um pouco complicada, a terra estava molhada e os caminhos era um trilho com muita areia, como havia chovido nos dias anteriores o trilho era um autêntico lamaçal, não era fácil caminhar porque a qualquer altura poderíamos pôr o pé em falso e escorregar, mesmo com calçado apropriado. Ora, no meu caso as minhas sapatilhas eram em pano… Foram alguns quilômetros nestes trilhos até que cruzamos com a ponte de Gomail, uma ponte muito característica que pertence ao século XIV, esta ponte já era muito importante no caminho dos “arrieiros”, que transportavam mercadorias até Santiago de Compostela.

Foi neste troço do caminho, quase a chegar a A Freixeira que algo surpreendente aconteceu. Ao passar no meio das árvores, onde um silêncio enorme tomava conta da nossa envolvência e, onde apenas os pássaros marcavam presença, começamos a ouvir uns barulhos no meio da vegetação - algo estava a quebrar galhos e fazia imenso barulho. Ao princípio ficamos receosas que fosse algum javali, paramos, ficamos quietas sem nos mexer para tentar entender o que era… e qual foi o nosso espanto de ver duas corças a correr uma atrás da outra a brincarem! Desta vez eu e a São não soltamos um grito de espanto, como no primeiro dia… mas foi inevitável, elas viram-nos e fugiram logo. [...]

Continuamos caminho até O Cachafeiro, onde fizemos uma breve paragem para tomar um café e retomamos o trajecto até Focarei que já não ficava longe.


Por Irina Marques

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