O movimento do interno para o externo
"A multidão percorre sala a sala, considerado as telas "bonitas" e "sublimes". Aquele que podia ter transmitido algo ao seu semelhante nada disse, e quem poderia ter entendido, nada percebeu. É o que se chama "a arte pela arte". A destruição da sonoridade mais profunda, que é a vida das cores, a dispersão inútil das forças do artista, eis a "arte pela arte".
O artista procura recompensa material da sua habilidade, do seu poder inventivo e da sua sensibilidade. O seu objectivo é satisfazer a ambição e cupidez.
No lugar de um trabalho profundo e cooperante entre os artistas, surge a rivalidade pela aquisição de bens materiais. Lamentam-se de um excesso de concorrência e de uma consequente superprodução. O ódio, a parcialidade, a inveja e a intriga são as consequências desta arte materialista, despojada de sentido.
O espectador afasta-se do artista, que numa arte privada de finalidade se recusa a ver o fim da sua própria vida e procura ir mais além. "Compreender" é educar o espectador e atraí-lo para o ponto de vista do artista. Anteriormente dissemos que a arte é filha de seu tempo. Uma arte assim concebida apenas pode reproduzir o que na atmosfera do momento é já um dado adquirido. Esta arte, que não contém em si mesma qualquer potencial futuro, que é um mero produto do tempo presente, e que jamais conceberá um amanhã, é uma arte castrada. Tem uma duração efémera e, privada da sua razão de ser, morre quando se altera a atmosfera que a gerou."
"Todos os fenómenos podem ser vividos de duas formas. Essas duas formas não estão arbitrariamente ligadas aos fenómenos - decorrem da natureza dos fenómenos, de duas das suas propriedades: Exterior - Interior (...) Mas eis que abrimos a porta: saímos do isolamento, participamos desse ser, aí tornamos agentes e vivemos a sua pulsação através de todos os nossos sentidos. (...) A obra de arte reflete-se na sua superfície da consciência. Ela encontra-se "para lá de" e, quando a excitação cessa, desaparece da superfície sem deixar rasto."
Kandinsky afirmava que «a arte era filha de seu tempo, e muitas vezes, mãe dos nossos sentimentos». Afirmação que muitos pintores consideram verdadeira, Gustavo Torner, afirma no seu discurso inaugural na Real Academia de Belas-Artes de San Fernando intitulado de «A arte, vitima das suas teorias e da sua história»:
Arte não existe como «coisa» física, e creio que nem sequer como conceito, pelo menos como conceito claro. O que existe são obras de arte. E as obras de arte são antes de mais, pelo menos primariamente, objectos físicos. A arte, para existir, para se manifestar, precisa de encarnar. Precisa de um objecto físico que a suporte.
Já Paul Klee, no seu livro Escritos sobre Arte, dizia a mesmas coisa, que a sua manifestação teria que ser feita através de um objecto físico, numa afirmação ele diz que " Arte não reproduz o visível, torna visível (...) O artista de hoje é mais do que uma maquina fotográfica sofisticada, é mais completo, mais rico e o seu espaço é mais amplo. É criatura na terra e criatura no âmbito de todo, isto é, criatura num astro entre astros. (...) Ora, isto ganha expressão passo a passo, de tal maneira que no processo de apreensão do objeto natural nasce a totalidade, quer este objeto seja planta, animal ou ser humano, quer esteja no espaço da casa, da paisagem ou no espaço do mundo, de tal maneira que começa por se dar uma apreensão mais espacializada do objeto. (...) Através do nosso conhecimento interior, o objeto alarga-se para além da sua aparência. Através do conhecimento do que a coisa é mais do que aquilo que o seu exterior dá a conhecer. (...) A força do acto criador não pode ser nomeada. Em ultima análise, ela permanece um mistério. Mas aquilo que nos tocou de forma essencial não é mistério nenhum. Nós próprios trazemos connosco esta força no mais intimo de nós. Não podemos nomear a sua essência, mas podemos ir ao encontro da fonte, até onde nos for possível. Em todo o caso, temos que revelar esta força nas suas funções, tal como ela se revela em nós próprios. Provavelmente ela própria é uma forma de matéria, mas, enquanto tal, não preceptível com os mesmos sentidos que nos permitem perceber as modalidades conhecidas da matéria. Mas é nas modalidades conhecidas da matéria que ela tem de se dar a conhecer. Ela tem de funcionar em união com estas. Na fusão com a matéria, tem que se transformar numa forma viva, real. (...) Na minha obra o ser humano não é espécie mas sim um ponto cósmico. O meu olhar terreno alcança longe demais, vendo a maior parte das vezes, através das mais belas coisas"
Muitos pintores e artistas têm este conceito, a arte é algo que surge da «alma», na falta de melhor conceito, porque mesmo este é abrangente. É intrínseco no ser, inexplicável, surge de uma necessidade interior.
Tem-se muitas vezes ligado à «arte» o conceito de «estética», que provem do latim e anteriormente do grego (que se percebe pelos sentidos) e a sua forma feminina ([conhecimento]) que se adquire pelos sentidos, e é nesta analise de elementos simbólicos procuravam definir arte, que por si só conforme tem vindo a ser visível é um termo complexo, numa panóplia de termos igualmente complexos como «beleza» e «estética».
Vemos então que estamos a entrar em campos de algo interno (quem o produziu) percecionado por alguém externo (quem visualiza), que se complementam pois criam diálogos - o que o primeiro cria pode não ser o que o segundo recepciona, poderá criar um complemento. E mesmo não exposto, o artista, cria uma narrativa ou poética visual na sua obra, através da sua simbologia muito característica e interior, através de uma procura nas suas profundezas. A arte tem uma componente de comunicação, seja interna ou externa - é a procura por conhecimento abordando questões muito vastas e nem sempre percetíveis através dos sentidos e aqui refiro a abstração em que existe uma aproximação a determinados temas, mas ela em si, é bem mais complexa. São vários os diálogos internos que ela possui, são vários os pontos de vista, então no caso da abstração em que ela tenta ir ao cerne da questão e no caminho irá encontrar inúmeras modificações, terá que fazer desconstruções das barreiras que vai encontrando na tentativa de chegar além.
Muitos pintores, tentaram entrar em contacto com a arte primitiva, talvez por ela ser a que melhor representava o estado que procuram no seu interior, arte primitiva e agir primitivo, leva-nos a entender os impulsos criativos e o que é rececionado. Hoje em dia a neurociência consegue entender e estudar alguns impulsos que algumas décadas atrás não tínhamos conhecimento - a neuroestética, que surgiu em 1999, desenvolve um saber centrado nas bases biológicas da experiencia estética, ela levanta questões sobre a perceção da arte.
Numa vã tentativa de explicar o processo que ocorre de impulso interior para exterior diria:
A pintar sinto-me numa espécie de êxtase, é como se eu não estivesse ali, poderia aproximar este sentimento ou estado como algo parecido como um processo de meditação, eu não existo. Experimento esta sensação inúmeras vezes e é como que as minhas mãos trabalhassem por mim, pareço não ter nada a ver com o que se está a passar, entretanto a composição surge, as cores manifestam-se, as linhas criam-se - apenas fico ali, sentada, e a pintura flui, aparece sobre a superfície material - materializasse - existe sempre uma pequena ideia prévia mas ela não é concreta. Desprendo-me de tudo o que me rodeia, tudo o que é terreno e material não teço juízos de valor se vou ter êxito ou se vou fracassar, limito-me a pintar, num estado de elevada concentração é como que se o mundano não existisse. Este foi um processo que sempre tive, que sempre experienciei quando criava, foi algo que sempre me acompanhou, ás vezes digo que estou noutro local muito calmo, um lugar meu, muito próprio.
Sempre senti isto desde muito nova, quando habitava locais dentro da minha própria cabeça e acabava por desligar do mundo, quando escrevia narrativas ou quando pintava visitava esses locais. No decorrer do meu percurso artístico, as mandalas, ajudaram-me imenso a alcançar esse processo fluido, a padronização, a repetição fez-me criar hábitos que, de certa forma fez alterar qualquer coisa cá dentro. Não consigo ter explicação concreta sobre isso. Sei que os estados que a minha mente visitava traduziam-se em processos de calma, e de tantas vezes o fazer o meu cérebro alterou-se. Para criar, tenho que desligar do mundo, e a obra, nasce de algo muito interno dentro de mim.
Costumo brincar a dizer que pegar no pincel é como pegar numa batuta dos maestros, as cores são como as notas, a composição vai-se criando com os ritmos internos que sinto, a obra aparece. Durante muito tempo achei este processo pelo qual passava muito estranho, contudo muitos dos estudos da neurologia e ciência comportamental já explicam o que ocorre.
Devo frisar que não sou apenas eu que tenho estes processos, todos nós temos, especialmente quando estamos a fazer algo que nos encontramos focados e exigem uma concentração tensa, é uma forma de dominar os gestos de uma tarefa para exigir o mínimo de gasto de esforços extra. Os movimentos que o cérebro conhece exigem menos esforço perante aqueles que estão a ser aprendidos.
Irina Marques
In Cadernos de Estudos
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