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Foto do escritorIrina Marques

Arestas

Atualizado: 14 de mar. de 2023

Tratei-te como poesia mas eras prosa, penosa, dolorosa mas no entanto abriste muitos compartimentos em mim. Não que me tenhas ensinado algo, não, isso está fora de questão - eu aprendi de outra forma, nos caminhos. Apenas te reformulei, limei, dei um toque ali, um jeito acolá e saíste assim. Pedras polidas com nome de pedras preciosas existem inúmeras, mas poucas brilham, e como já me segredaram ao ouvido "nem tudo o que reluz é ouro", e eu nem considero os diamantes os meus melhores amigos. Verdade, e eu que nem sou atraída por brilhos, gosto dos cantos, dos lugares longínquos, daqueles onde não me observam nem sabem que lá estou. Foi assim que aprendi a observar, atenção, não é o mesmo que julgar - aprendi os movimentos, as palavras não ditas, as atitudes e gestos em micro expressões. Aprendi com a escrita, com a fala, com a postura, analisei, vi, revi e percebi - não há ser especial - todos somos estrelas no nosso pequeno mundinho mas cada um carrega uma particularidade.

Aprendi a viver sem expectativas, não espero nada de ninguém, assim tudo me surpreende as pequenas e grandes coisas. Fiz-me a contar comigo e só comigo, agregando muitos, deixando para trás outros - nem tudo me interessa. Gosto da frontalidade, de quando sentimos, dizemos, exprimimos - foi assim que comecei a escrever, ora dialogando comigo, sendo o mais sincera possível, deixei de parte todas as mentiras que me contava, todas as desculpas que arranjava para os outros, tudo o que não me compunha. Fui deixando pedras brutas para trás, colecionei conchas e outras pedrinhas reluzentes que brilhavam na areia da praia, com formas bem interessantes.

Sou ser imaterial, não preciso que me limem arestas, componho-me de frestas e fissuras. Sou delicada, por vezes, por dentro mas não que me ofenda facilmente, é preciso saber brincar connosco, a vida torna-se bastante mais leve, e quantos papeis já não rasguei porque resgatei pedaços e reformulei. E como se tornou uma vida - formular e reformular - abstração, digo.

Todo o trabalho de uma promessa não cumprida fez-me lutar, pintar, criar, desapegar, ignorar, esquecer, reformular, imaginar, até que essa promessa virou erro, e com erro, aprendizagem. Deixei parte de mim no passado, nunca tive intuito de ser a mesma, que era, que fui. Contudo, ela está cá dentro, apenas aprendi a brincar desanuviar, as dores e histórias que ela possuía. Da prosa, dolorosa, penosa tornei-te poesia bruta e delicada para num poema caber.

Já não procuro mas, contudo, todos os dias encontro. E de encontros e desencontros continuarei a escrever, para me perder - como "adoro" perder-me na minha comunicação inquietante, que já faz parte de mim.


Irina Marques

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