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Foto do escritorIrina Marques

Narrativas superficiais

Encontrava-se naquele espaço, amplo, onde as paredes eram cobertas por todas as suas obras. A sua vida, ou pelo menos parte, estava ali a contar uma narrativa temporal naquela superfície.

Não deixava de achar curioso, o que se via era superficial, todo o seu processo e toda a sua história residia por trás daquela obra que se espelhava apenas numa parede, assim, imagem apenas. Faltava muito mais. Cabia-lhe a ela, dar voz ás suas telas - essa era a parte mais difícil - expor suas inquietações, seus processos, sabia, haver uma falta de compreensão, mas tentaria.

Por breves momentos, após a colocação das obras no espaço, ficou em silêncio sentada numa cadeira a pensar no que haveria de dizer. Como vou explicar todo este processo?, pensava. Esteve a observar o espaço durante uma hora, só ela e seu trabalho.

Eram os seus períodos que se encontravam cronologicamente ao redor da sala ampla e corredor. A parte mais visível do seu campo visual eram as suas obras mais antigas. Não deixava de achar curioso e sentir um pouco de orgulho, mas esse orgulho era escondido, porque se tinha superado e não por se achar melhor que ninguém. Olhava em redor e pensava: Criei tanto, penei tanto, sofri tanto e converti tudo isso em pintura, escrita, fotografia… O que agora lhe parecia menos doloroso, no silêncio observava todos os processos, absorvia-os, cada tela um universo de pensares, de estudo, de aprofundamentos. Cada tela, um fragmento de sua vida, uma aprendizagem.

Agora olhava para o seu passado, para o seu núcleo, as obras mais antigas e sentia que tinha que passar por todos aqueles períodos, sem saltar nenhum deles e ainda se encontrava meia incrédula: Como é que todo este meu pensar, trabalho, criação deu uma exposição desta envergadura.

Não era a primeira exposição que tinha, mas o sentimento era o mesmo, era como se fosse algo saído de uma história que parecia não pertencer a ela. Começou por “Soltar os Gatos” para o “Conhece-te a ti próprio”, passou pelas abstrações e agora abordava todas as suas “Inquietações”, e como toda a sua exposição era uma comunicação inquietante. Agregava todos os sentidos das palavras e até, e fundamentalmente, os além compreensão.

Até que chegou o momento de demonstrar ao público, para ela era sempre um desafio - os seus trabalhos não deveriam ver a luz do dia, eram algo muito íntimo, contar sua história era como se abrisse um diário do seu coração e emoção - nunca fora de falar muito sobre si, apenas escrever. As obras tornaram-se fenômeno de discussão, mas no fundo o sentir era só seu. Com o tempo apercebeu-se de algo que já não lhe era novo - alguém sentir as obras de forma profunda - o espectador tornava-se interveniente, a obra puxava-lhe as suas próprias narrativas, lembranças. Complementavam e tornavam-se parte activa do processo, havia a curiosidade e interesse de em torno das obras surgirem inúmeras narrativas, histórias, memórias - comunicação

As obras já não eram só suas, elas agora, pertenciam a quem as via, também. E cada vez que ela contava os inúmeros raciocínios, estudos, curiosidades, histórias que residiam nas suas obras sentia que alguém a entendia um pouco mais. As obras falavam.




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