Em 2018 fui diagnosticada com uma depressão grave ao ponto que não conseguia fazer as coisas mais normais do dia a dia, ela apareceu devagarinho sem dar conta, nunca pensei que fosse possível eu ter uma depressão até porque para mim os sintomas que estava a sentir era apenas cansaço, não conseguir fazer determinados objectivos porque era preguiçosa (foi algo que me acompanhou a vida toda, dizerem-me isto, em algum momento da nossa vida as palavras têm peso e acreditamos), estava num estado de profunda tristeza tão profunda que não conseguia ver felicidade em lado nenhum. Um facto que não estava a ajudar era a procura de emprego, a loja que eu tinha trabalhado durante cinco anos tinha encerrado e tinham dispensado todos os funcionários, estava em casa à três anos, procurava emprego e estudava ao mesmo tempo, na altura encontrava-me a estudar web design.
Houve um período que comecei a engordar bastante, nenhuma roupa me servia e a muito custo procurei uma nutricionista, andei nessa nutricionista durante quase um ano e as metas que ela estipulava não estavam a ser concretizadas. Algo tão simples como fazer uma caminhada matinal de vinte minutos representava um esforço sobrenatural para mim, custava-me sair de casa, vestir para caminhar e o esforço de caminhar para mim era como estivesse extremamente contrariada a fazê-lo. Cada vez que ia à consulta da nutricionista, em vez de emagrecer, engordava e não entendia o porquê. Tinha reduzido na alimentação, verificava todos os produtos para saber se continham açúcar ou não e comia a alface e sopa que me tinham sido sugeridas. Era mais uma luta…
Provavelmente na minha cabeça muita coisa estava a pesar. O facto de não ter emprego e estar em casa sem receber, estar a estudar e apesar de gostar do que estava a aprender sentia-me muito limitada porque era uma matéria cheia de regras e lógicas em que se falhasse uma pequena coisa nada funcionava, comecei a ouvir muitas músicas passadas, vinham-me memórias vividas de tempos, situações, erros e um sentimento começou aos poucos a tomar posse de mim - o medo da morte. Não era medo, era mesmo pavor. Cada vez que o assunto me vinha à cabeça havia algo dentro de mim que despertava, um frio, um vazio, começava a cair num vácuo muito profundo e de tão fundo que ficava quase que sem ar. Era um sentimento demasiado doloroso que não consigo descrever em palavras. Sentimentos não são fáceis de descrever em palavras, sentimentos não são fáceis de descrever… Este vácuo apoderou-se de mim e culminou numa noite.
Houve uma noite que o meu companheiro quis ir ao cinema ver um filme, há muito que ele achava que eu me estava a afastar de tudo e todos, apresentava sinais de tristeza muito profunda e não continha as lágrimas, hibernava no sofá e apresentava demasiados esforços para fazer o que quer que fosse, nada me interessava. Ele achou por bem que eu deveria sair de casa e divertimo-nos um pouco no cinema. Eu por outro lado, apesar de não ter vontade nenhuma, entendia que deveria lhe fazer a vontade, tinha noção que estava muito tempo em casa e demasiado triste, se o facto de sair lhe representava alguma felicidade, então, fazia esse esforço. Saímos e fomos de carro em direção ao shopping para vermos o filme. No carro, os constantes medos apoderaram-se de mim e eram medos estranhos, pensava que carros iam bater no nosso, se houvesse alguma aceleração o meu coração acompanhava estava com os sentidos super despertos para qualquer coisa má que nos fosse acontecer, até que inevitavelmente aquele pensamento voltou - a morte, sentia medo, estava em constante estado de alerta, tudo me assustava. Era um sentimento demasiado poderoso que encadeava e gerava mais pensamentos fortes, estarmos vivos até de repente nos tornamos nada, qual o propósito de estar aqui? Tudo o que fazíamos representava alguma coisa? Um dia estávamos, outro, iremos desaparecer, representava alguma coisa o que fazíamos aqui?
Estacionamos o carro na garagem do shopping e a falta de ar tomava posse do meu corpo, constantemente suspirava, tudo me parecia feio. Subimos as escadas em direcção à bilheteira, compramos os bilhetes e, entretanto, fomos jantar. Quando se aproximou a hora de irmos ver o filme Star Wars entramos na sala, era a maior sala do cinema. Esperamos um pouco até o filme começar e de repente ficou escuro, as letras no ecrã a ir em direcção ao infinito e a minha cabeça não se concentrava, apenas tentava ler, mas os pensamentos que me vinham eram outros, completamente diferentes daquele ambiente, novamente a morte… o que haveria depois? Estávamos aqui e deixamos de estar, qual o nosso sentido? Qual era o sentido de tudo isso? Entretanto o filme começou e eu olhava para o enorme ecrã, as imagens passavam mas eu não estava ali, quer dizer, estar estava mas as paredes começaram-se a fechar sobre mim, a grande tela emitia barulhos e os meus ouvidos absorviam aqueles barulhos como esponjas, dentro de mim o meu coração batia, batia, batia, não a um ritmo normal mas cada vez mais forte, crescia e as paredes caiam sobre mim - faltou-me o ar. Comecei a tremer e a ter cada vez mais dificuldade de respirar, eu já tinha passado por estas sensações em tempos, mas agora estava a ser demais, sentia que me ia apagar ali na sala de cinema e nada me tirava da cabeça isso.
Disse ao meu companheiro que não me estava a sentir bem, já não era a primeira vez que ele ouvia isso de mim, ficou preocupado e perguntou se queria sair. Eu não lhe queria estragar o filme, sabia que era um dos seus filmes preferidos, sabia que não andava a sair muito, não queria estragar a noite. Respondi que eu aguentava, não era necessário. Passaram mais dez minutos que para mim representou quase uma hora, o sentimento de abafar, medo e suores não me passava, muito antes pelo contrário, agravava, o coração parecia que queria saltar do peito, estava-me a sentir tonta a sala engolia-me. Não aguentei e disse-lhe que ia sair, mas ele que ficasse, estava preocupada com ele, sabia que ultimamente não andava muito bem e ele aguentava as minhas crises de choro, de desespero, as minhas amarguras, as minhas irritabilidades… Na altura, ele insistiu em sair comigo.
Ao sair da sala disse-me para irmos às urgências, havia um hospital naquele centro comercial, primeiro fiquei relutante, mas como o desconforto que estava a sentir era tanto e o medo e, o sentimento que a qualquer altura ia morrer, coração apertado - resolvi seguir o seu conselho e ir para as urgências. Sentada na sala outros sentimentos começaram-se a apoderar de mim, a vergonha. O que é que eu ia dizer à médica? Estava constantemente a pensar na morte? Isso causava-me aflição? Pensar assim… não era algo que todos sentimos? Ela iria arranjar alguma solução para eu deixar de pensar em tudo que me incomodava? E cada vez mais o coração apertava, a impaciência de nunca mais ser chamada e questionar o porquê estar ali, naquela situação cada vez mais pesada, queria ir embora. Só queria fugir e desaparecer, era algo recorrente em mim.
A determinada altura, chamaram o meu nome, entrei no consultório com o meu companheiro e tentei começar a verbalizar o que estava a sentir… as palavras não faziam sentido, não conseguia articulá-las, gerar frases, desatei a chorar, envergonhei-me daquela situação, de estar ali em lágrimas em frente a uma profissional de saúde, de estar a fazer perder o tempo dela e tentei começar a descrever o que sentia… dentro das minhas possibilidades. Não após muito tempo ela apercebeu-se que eu estava a ter um ataque de pânico, e fui encaminhada para fazer análises, deu-me uma medicação e fiquei numa sala a receber soro para me acalmar.
Passei um tempo naquela sala, não consigo precisar quanto tempo, esse tinha-se diluído completamente já não precisava se um minuto eram dez minutos, ou se dez minutos representavam um minuto. Sei que estive ali um bocado e passado um tempo voltei ao consultório da doutora.
Agora tentava verbalizar melhor o que me estava a ocorrer, um pouco mais calma a conter as lágrimas que queriam-se soltar a qualquer momento. Quando ela perguntou o que eu sentia? Voltei a chorar, cada vez que sentia que alguém se preocupava comigo sentia-me mal, nunca consegui expressar os meus sentimentos e alguém estar preocupada comigo isso não assentava na minha cabeça, só queria desaparecer de ali esconder-me. Aos poucos comecei por referir que estava a ser um nojo de pessoa, não me sentia bem em lugar nenhum, andava impaciente, não conseguia estar com amigos, não conseguia fazer as coisas em casa (cozinhar, limpar a casa, até mesmo tomar banho), estava constantemente cansada, exausta, sentia-me preguiçosa para tudo, só o facto de me levantar do sofá para fazer a mínima coisa possível era como subir o Everest (não que alguma vez o tenha subido, mas é sempre uma referência), doía-me o corpo, chorava a cada passo, e os meus pensamentos prendiam-se sempre ao significado da existência, porquê e para quê?
Não demorou muito para ela perceber o que eu tinha. Disse-me exatamente com estas palavras “Não é preguiça, é uma depressão, está com uma grande depressão” e aconselhou-me vivamente a procurar ajuda, inclusive disse que ela dava consultas fora daquele hospital e ajudava algumas pessoas que estavam assim, mas que eu deveria procurar ajuda com a máxima urgência possível. Saí do consultório a pensar, eu vou precisar de ajuda, eu que não peço ajuda em quase nada, eu que sou tão desenrascada, eu que só quero que me deixem em paz no meu espacinho vou ter que debitar os meus problemas a alguém. Houve uma luta interna muito grande, sempre fui daquelas pessoas que segui o meu caminho sem mostrar o meu lado fraco, apesar de sofrer muito com isso, colocava um escudo à minha volta e seguia em frente, magoaram-me e eu seguia em frente, doía e eu seguia em frente, tratavam-me mal e eu seguia em frente…. Admitir que estava mal sentia como fraqueza. Mas uma coisa era certa, eu estava mal e muito mal. Em Janeiro de 2018 decidi procurar ajuda profissional.
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