Ao chegarmos a Focarei era hora de almoço, dirigimo-nos a um supermercado e compramos umas sandes e enchidos para as fazer. Encontramos um jardim com um banco um pouco mais à frente e sentamo-nos a comer as nossas sandes e a descansar um pouco. Tínhamos a sensação de que iríamos chegar mais cedo a esta localidade, mas o caminho de lama fez-nos abrandar muito o ritmo da nossa caminhada, contudo havia muita coisa que nos havia enchido a “alma”, até então o trajecto estava a ser bastante positivo, apesar dos pés doerem um bocado conseguia abstrair-me com determinados detalhes e curiosidades que ia vendo no caminho. Sempre fui um pouco assim, para me distrair de algo que é difícil ou complicado, tento absorver as coisas mais positivas - muitas vezes o que me faz tornar uma pessoa um pouco distraída demais e sonhadora. Algo que aprendi no caminho foi colocar as expectativas muito em baixo, desta forma, tudo o que viesse era sempre positivo. Claro está, que se na vida tomar esta atitude constantemente não se dá valor a quase nada, contudo um equilíbrio justo entre o que se deve dar valor devidamente é sempre importante. Reconhecer quem gostamos, quem nos marca, quem nos faz falta, quem sempre esteve ali para nós, que sempre nos apoiou - esses valores são importantíssimos, e o caminho abria-me muito os olhos para essas importâncias. Por vezes estamos tão focados no dia a dia e em determinados objectivos e situações que deixamos um pouco de parte as pessoas realmente importantes. Na minha vida sempre fui muito focada, extremamente focada quando estou a criar - é como se entrasse num mundo surreal habitado pelas mais diversas criaturas e simbologias, descolo da terra e entro na fantasia, no irreal, no imaginário - até que por vezes, é muito difícil desligar deste mundo e voltar a pôr os pés no chão. A realidade transforma-se um pouco e voltar à dita “realidade” é muito complicado. Com o tempo adquiri mecanismos que me fazem regressar e, no caminho aprendi mais alguns, especialmente a geri-los. Costumo normalmente dizer que ando meia perdida neste mundo de sentir, mas com algo concreto a guiar, cada um de nós tem a sua bússola para navegar - e perdemo-nos para encontrarmos o caminho certo a trilhar. O caminho oferecia-me várias situações em que o meu inconsciente andava à deriva, imaginava, criava histórias, ligava pontos e amplificava a visão.
Após almoçarmos, seguimos trajecto para Salauzóns e devido a não termos reparado num sinal no meio de Focarei, perdemo-nos. Seguimos uma estrada que não era suposto ir, andamos cerca de dois quilômetros sem indicações a dizer que estávamos no caminho certo, começamos a suspeitar que não estávamos e… lá voltamos tudo para trás outra vez… até Focarei, onde demos com a indicação que não tínhamos visto à primeira.
Seguimos então por ruas feitas em paralelo até chegarmos a Chamosa e um pouco mais à frente Salgueiro, até que nos apercebemos que a estrada que nos havíamos perdido anteriormente era paralela aquela que estávamos a fazer no meio da aldeia.
Aqui o caminho foi todo feito no meio das aldeias e campos, a determinada altura entre a Chamosa e Salgueiro apanhamos uma situação um pouco complicada… O trilho era feito em terra com vedações em muros de pedra de um lado e de outro e a determinada altura havia um grande buraco nesse trilho que, com as chuvas, encheu-se de água e formava uma pequena lagoa. Não tínhamos como atravessar para o outro lado a única alternativa (e como não havia barco - e aqui a minha imaginação tomava lugar e transformava esta situação numa narrativa épica) seria escalar o muro cheio de silvas e estreito, percorrê-lo e descer mais à frente… claro que a mochila não ajudava muito neste tipo de situação, sentíamo-nos uma espécie de tartarugas com a casa às costas a fazer ginástica, a qualquer momento alguma pedra do muro poder-se-ia soltar e nós cairmos lá abaixo. Felizmente que correu tudo bem.
Depois começamos uma subida até as Casetas onde cruzamos com a estrada que tínhamos seguido anteriormente. Seguimos até Levoso onde vimos grandes prados e algumas vacas a pastar, continuamos a subir e cruzamos com um moinho e cascata de Quintillán, um lugar idílico, lugar esse que fez a minha mente navegar novamente - quantas histórias carregariam um lugar assim?
Esta parte do caminho foi muito agradável de se fazer, era toda trilhada no meio da vegetação onde sentíamos o cheiro a folhas molhadas, os verdes resplandecentes das folhas das árvores e da relva e o musgo que cobria os troncos. Mas algo que não estava à espera aconteceu, entretanto…. Estávamos a andar normalmente, a uma velocidade normal com a qual se podia ver o observar tudo ao redor, para chegarmos a tempo ao Foxo e não nos acontecer como em Soutelo, quando uma das minhas bolhas no pé rebentou…. Ora bem, não vou descrever as dores que tive, apenas posso dizer que uma frustração inigualável tomou posse de mim e por momentos pensei em desistir do caminho. Lá tive eu que lutar contra a minha parte mental (e agora corporal) e entender que já havia feito tantos quilômetros que não podia desistir - já só faltavam cerca de 34 quilômetros dos 150 que nos tínhamos proposto a fazer. As dúvidas, incertezas, lutas, surgiram todas aqui e a grande pergunta que colocava era: “Se com estas dores todas iria conseguir fazer o restante caminho?”. Tive uma conversa com a São e optamos por andar bastante devagar, se eu não pousasse o pé todo no chão conseguiria um apoio para que o corpo continuasse a mover.
Em todo o caminho eu e a São tínhamos ritmos diferentes a andar, ela levava um calçado mais apropriado para a caminhada, nas descidas andava bastante bem. Eu pelo contrário, levava um calçado confortável para a caminhada, contudo, não era o mais apropriado porque se molhava, nas subidas andava bastante bem - havia então um ponto de equilíbrio. Conversamos um pouco e chegamos à conclusão que tínhamos mesmo que abrandar o passo e já estava a ver que os dias que nos havíamos proposto a fazer iriam ter que ser aumentados.
Apesar das dores, segui em frente e continuei caminho, a apreciar a paisagem para não pensar muito no pé. Era belo ver aqueles campos todos e os vastos horizontes e pelo caminho alguns pormenores deliciavam-me as vistas.
Quando chegamos a Castrelo de Abaixo encontramos uma fonte onde foi possível abastecer a garrafa de água e lá encontramos uma senhora na aldeia com a qual falamos um pouco. Fiquei um pouco triste de a ouvir dizer que as suas galinhas eram com quem ela conversava, que não tinha ali ninguém naquela povoação e que poucas vezes os familiares a visitavam, tratava-se de uma senhora de idade e senti-me um pouco infeliz com a situação.
Continuamos caminho, agora sempre a subir montanhas e a determinada altura encontramos um novo caminho - O Caminho Real, isto significava que já estávamos próximo de Santiago de Compostela, os caminhos que lá iam dar já se começavam a cruzar.
Não deixou de haver um sentimento de satisfação, saber que tínhamos chegado até ali, que já tínhamos percorrido inúmeros quilômetros, usufruído de paisagens e situações únicas, cruzado com imensa gente boa - era gratificante. Sentia-me grata, especialmente isso, grata por o caminho nos estar a correr bem e agora, o ponto de união com um outro caminho.
Continuamos a seguir caminho, por caminhos de terra que se notava ter passado tractores e a chuva voltou a ameaçar…
Talvez por estar um pouco mais sensível do pé, senti que aquele caminho não era muito fácil de fazer, não conseguia andar a uma velocidade constante e havia muitos buracos e pedras, na altura, só pude brincar com a situação e uma fotografia que ilustrava muito bem o meu sentimento surgiu no momento certo já a chegarmos a uma estrada asfaltada que nos indicava que havíamos chegado a Pardemarin.
Por Irina Marques
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