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Foto do escritorIrina Marques

Os loucos..., texto

Atualizado: 22 de fev. de 2023

"Loucos somos todos, tenho pena é daqueles que se acham sãos e não veem o grau da sua loucura..."


Este pequeno episódio passou-se numa determinada altura da minha vida. Quando trabalhava numa loja de comércio local. Tinha sido o meu retorno à "normalidade", arranjar emprego, tinha acabado de sair de uma depressão. Estranho dizer isto, sair de uma depressão, creio que nunca saí porque por vezes estes episódios ainda têm tendência em me visitar embora, agora, já os consiga identificar e tome medidas para a sua profundidade não ser devastadora.

Na altura fui trabalhar a cobrir as férias de umas funcionárias de uma loja de sapataria. Dos dez mil empregos que tive, esse, foi um deles, trabalhar numa sapataria. Coisa que durou cerca de três meses, mas era suposto.

Algo que reparei quando voltei a estar "funcional" e social é que, sem querer, comecei a entender muito da psicologia do ser humano. Foi algo que sempre me fascinou desde nova - os comportamentos sociais. Inclusive fui incitada pela minha psicóloga a tentar seguir esse rumo, contudo, preferi apenas ficar como curiosa e estudiosa no assunto e segui as artes, que sempre me acompanharam na vida.


A determinada altura, trabalhava na sapataria com várias mulheres, uma delas era com quem eu passava mais tempo nos dias rotativos. Tinha-me sido designada uma loja e lá quem trabalhava era uma funcionária, colega.

Eu sempre fui uma pessoa extremamente atenciosa, educada e prestável para com os clientes. Trato as pessoas, como gostaria que me tratassem. E apercebi-me que o facto de assim o ser, começou a incomodar a minha colega de trabalho. A loja começou a ter clientes novos, elogiavam o meu trabalho. Eu conversava com os clientes, punha-os à vontade, puxava histórias e vivências, era interessante - uma forma de conhecer vidas, de socializar com as pessoas, comunicar.


No penúltimo dia de trabalho deparei com uma situação deveras interessante... Uma situação de ciúmes e inveja, e por norma esses assuntos passam-me completamente ao lado, não fosse a situação em questão deveras caricata por ser tão óbvia.


Encontrava-me a atender duas clientes que eram extremamente simpáticas, riam-se com frequência, falavam um pouco alto, encontravam-se entusiasmadas com as compras e eu, tentei fazer da experiência delas algo agradável, ainda para mais eram turistas. Estive a atendê-las durante cerca de quase duas horas em que tive que ir imensas vezes buscar material a uma outra loja que se encontrava a quinhentos metros dali. Para tal, para saber se haviam os tamanhos nessa loja, tínhamos que telefonar e falar com a colega a pedir. A determinada altura saímos da loja e íamos a encontro no meio da rua.


Numa dessas investidas em que se teve que pedir determinados tamanhos, sem querer, acabo por ouvir a minha colega ao telefone.


"Não se nota? É a tua amiga a atender, não se vê logo. Ouve-se à distância, os risos... Ah pois é, amanhã és tu que vais estar com ela. Só ela é que faz isso de ver se temos tamanhos assim tantas vezes, achas que eu te pedia assim tantas vezes. É sim a tua querida amiga não vês a forma como ela fala e não se cala?"


Ora bem, estava eu a desempenhar o meu papel de funcionária a atender clientes, com o intuito dos meus patrões terem algum lucro com as vendas e esse lucro se transformasse em salários para os funcionários ao final do mês. Estava a proporcionar um momento agradável às pessoas dentro daquela loja, porque no fundo é isso que as pessoas levam dos locais, as experiências, o contacto com outras pessoas, a envolvência. Inclusive, as clientes estavam a levar três pares de sapatos. Estou eu a falar com elas e oiço isto ao telefone.


Continuei a atender as pessoas, continuei a ser educada, a falar com elas, a ser agradável e elas acabaram por sair da loja satisfeitas, agradecidas pela simpatia e por terem passado ali um bom tempo, saíram a rir-se.


A minha colega, visivelmente incomodada com a situação, do trabalho que tinha tido em ir buscar caixas e telefonemas diz no final, depois de elas terem ido embora:


"Fogo que gente louca, não se calavam, só gritavam."


A parte de elas terem contribuído para um momento agradável na loja, tirando-nos do aborrecimento de ver pessoas a passar na rua e não fazer nada, não foi tomado em conta. A parte de elas terem contribuído para o nossos salários, não foi tomada em conta. A parte de estarmos a trabalhar, não foi tomada em conta. A parte do esforço recompensado, não foi tomada em conta. A parte de eu ter dado de mim enquanto ela apenas se limitava a telefonar, não foi tido em conta. E ainda no final, chamou as pessoas de loucas.


Fitei-a com olhar sério, porque a partir daquele momento pouco mais lhe dirigi a palavra e apenas disse:


"Loucos somos todos, tenho pena é daqueles que se acham sãos e não veem o grau da sua loucura..."


Desde essa altura que a frase me acompanha como lembrete, inclusive consta num livro. Notoriamente, a minha colega estava numa crise de ciúmes, e quis com isso ainda desprezar aqueles que estavam a passar um tempo agradável a insinuar que as pessoas eram malucas/loucas. Ora bem, eu não tenho qualquer problema em dizer que o sou, tenho o meu grau de loucura, grande e vasto, estranho é aqueles que não observam os seus próprios graus de loucuras e se acham grandes ícones.


Escusado será dizer que ela não entendeu o que que quis dizer com a frase e de tempo a tempo acrescentava:


"Eu não sou maluca... eu não sou louca"


Foi uma frase que ainda lhe deu que pensar por umas horas. E eu? Permaneci calada a navegar nos meus pensamentos que já não se encontravam ali, nunca gostei de conflitos deste género, se tenho consciência deles? Tenho, mas não participo. Aguardo até eles se tornarem uma história, narrativa, conto ou vivência.


Do Quotidiano

Irina Marques


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