Abstração nem sempre é um tema fácil de entender, então na pintura pode muito bem ser confundida com algo decorativo e sem sentido ou ainda - "que qualquer um pode fazer". Talvez haja um pouco de verdade em alguns destes argumentos mas para estas verdades, existem sempre os seus contrapontos.
A abstração, nas minhas obras, apareceu depois das mandalas porque houve um processo de construção e desconstrução de um pensamento. Foi como uma espécie de derivação. Ao fazer o Caminho de Santiago de Compostela automaticamente o meu pensamento abstraiu-se e ao mesmo tempo amplificou-se. O que seria concreto até à data passou a possuir mais significados e começaram a tornar-se temas ambíguos, indefinidos e até mais vagos. Mesmo antes do caminho já aplicava um pouco a abstração mas pós-caminho, tornou-se mais frequente.
Abstraí-me do concreto, procurei novos significados e projectei novas ideias. Uma linha, que para algumas pessoas, é de facto uma linha deixou de ser uma linha e passou a ser uma forma com história. Fará sentido? Provavelmente para muitos não. Passo a explicar e exemplifico:
Durante o Caminho algo que aceitei em mim, fiz as pazes e convivi com o facto de me sentir constantemente uma "estrangeira" em qualquer sitio que frequente. É algo constante em mim, um sentimento de não pertencer a (algo, comunidade, localidade, turma...) e é claro, após muito estudo e levantamento de questões comecei a entender e desconstruir esta situação. Desde muito nova que saí da cidade onde residia que era Lisboa e fui viver para o Norte do país, escusado será dizer que a diferença de mentalidades foi algo muito marcante. E neste aspecto não estou a focar se para melhor ou pior nem a particularizar, apenas a constatar - foi uma diferença abismal. Outra situação que se deu foi ter sido retirada de uma turma que conhecia todos os meus colegas e me dava bem com toda a gente, porque inclusive, algumas pessoas que andavam na escola eram amigos meus de infância. De repente fui colocada numa outra escola, especificamente um colégio onde não conhecia ninguém e onde passei tormentos ora pelo meu sotaque, entre outras coisas menos divertidas.
Estas histórias de constantes deslocações para outros lugares marcaram imenso a minha personalidade e, falo isto, não no mau sentido porque amplificou a minha visão sobre as coisas. Vamos agora à abstração?
Era como saísse do vermelho e de repente fosse para o verde verde para mais tarde ir para a azul.
O que estamos aqui a dizer é as localidades, sendo vermelho a cidade de Lisboa, verde a cidade de Braga e futuramente azul, a cidade do Porto. Penso na minha vivência e histórias a nível de cores, a atribuição das cores específicas é algo que nasce bem cá no fundo. Talvez porque o vermelho representa a minha essência, pulsação, aquilo que me componho. O verde, algo mais calmo, quieto... E o azul? Serenidade. Algo a ter em conta é que nem sempre estas cores serão uma representação fiel destas emoções. O vermelho oscila muito e pode atingir gravidade ou essência, ou até outro aspecto diferente.
Hoje em dia representa-se as cores como atribuição a sentimentos e existem inúmeras fórmulas sobre o que ela nos provoca internamente, é como se estivéssemos a consultar um manual dos sentimentos só que nas cores. Esta atribuição até pode estar correcta para muitos mas para os artistas plásticos e falo no meu caso porque não poderei falar por todos eles, é como rotulassem as nossas obras. Ao observador que vê uma pintura onde predomina o vermelho, de acordo com a sua "paleta interna de significados aplicados em qualquer sítio que viu" vai constatar que o artista deveria estar a sofrer de uma crise de ira ou amor, e questiono onde o perigo se insere neste vermelho. Depois temos estas analogias tão opostas na mesma cor, então o vermelho é tão carregado de significados...
Um dia em que mostrei uma obra antiga minha a uma colega, a obra era abstrata, em cores pretas e vermelhas, provavelmente das primeiras que criei, ao observar a obra teceu o seu parecer "esta obra é linda, carregada de amor". Está completamente correcto o seu parecer, de acordo com o seu código o vermelho representaria amor, é normal, é o que aprendemos, é o que no Dia dos Namorados vemos por todo o lado. Contudo, o meu sentir ao criar aquela obra, não podia estar mais distante do sentir dela. A obra possuía também a cor preta, elas intreceptavam-se, cruzavam-se, criavam formas geométricas e padrões, todos eles bem confusos - a obra foi criada num dos períodos mais conturbados da minha vida - ali estava representada uma enorme confusão sentimental, o caos. Como podemos ver, neste caso, a abstração tem uma grande amplitude. No primeiro caso vermelho representa amor, no segundo caso, onde se tem em conta que esse vermelho esta entrelaçado com o preto, possui um significado completamente oposto. Cores misturadas com outras cores carregam novos significados. A abstração de uma pessoa não é igual à de outra.
E se existem cores às quais as atribuições de sentimentos possam estar certas? É claro que existem, mas a simbologia das cores foi algo criado e que temos assimilado ao longo dos anos como algo constante, no entanto existem oscilações. Normalmente as pessoas falam através de linguagem e códigos linguísticos usados para comunicar, um artista plástico usa as suas cores, que muitas das vezes não são catalogadas e racionalizadas. É a nossa forma de comunicar. Querem um sentido mais amplo para a abstração do que falar de cores?
(continua)
Irina Marques
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