Tudo começou assim como uma tela, e outra, e outra, aos poucos fui perdendo o medo de pintar. Olhava para a tela e enchia-me de coragem para imaginar o que ali iria residir, outro hábito que recuperei foi começar a ler aos poucos. Isto porque durante o período em que estive mais em baixo não conseguia fixar bem a história. Pegava num livro e lia algumas páginas, no dia seguinte, continuava, o problema é que não conseguia lembrar de tudo o que tinha lido anteriormente. Mas aos poucos esta situação foi sendo ultrapassada, especialmente porque comecei a ler sobre assuntos que me interessavam e não histórias que estava habituada a ler. Uma nova panóplia de autores começaram a aparecer nas minhas prateleiras, deixando de parte aqueles que até à data me suscitaram interesse. No final de 2018 o meu universo literário mudou. Automaticamente o cinematográfico também. Durante o período da depressão envolvi-me em demasia com filmes de terror e violência, isso alterou-se completamente. À medida que os meus despertares aconteciam, novos interesses apareciam.
Algo que me marcou muito na altura foi as várias obras de Kandinsky, tanto as pinturas como a sua teoria, aprofundei esse assunto porque sentia que era algo que me ajudava. Sempre gostei de música, sempre me acompanhou toda a vida e estranhamente (embora agora saiba o porquê) lembrava-me de todas as letras das músicas que ouvi desde muito, muito nova. Ao estudar um pouco sobre TDAH, aprendi que isso é normal, tem a ver com a atenção que damos a determinada situação, temos uma audição mais apurada, ouvimos barulhos que se encontram mais ao longe que outras pessoas, a música e todos os seus ritmos, letras e instrumentos faziam apurar a minha audição. Há quem diga que se perguntarem o que almocei ontem, terei que pensar um pouco para me recordar, mas se tocarem uma música da minha juventude, sei as notas e letras de cor, sem necessitar de me recordar de nada.
De manhã fazia as minhas caminhadas matinais, algo que era obrigatório fazer e como não gostava muito de caminhar em silêncio levava as minhas playlists escolhidas a dedo, para me ajudarem na parte sentimental. Caminhar que no início me custava tanto passou a ser uma atividade que eu tinha prazer em fazer. Foi nesta altura que comecei a escrever novamente, para além de pintar, escrevia - tudo o que eu sentia no momento que pintava assim como as descobertas que fazia. Escrevia sobre mim, sobre a sociedade, sobre os seus comportamentos, colocava questões, procurava argumentos, novas perspectivas e observava a vida.
A determinada altura resolvi expor um pouco esses meus pensamentos e regressei ao universo dos blogues, algo que já em tempos tinha criado, embora não tivesse dado continuidade. Quando o voltei a fazer foi como “pensasse alto”, como já escrevia há algum tempo, na altura pareceu-me bem partilhar os meus pensamentos. Os meus pensamentos, que sempre se apresentaram de forma muito confusa, ali era o espaço onde os organizava, com a ajuda da minha psicóloga e com as minhas tarefas, escrevia. O que escrevia apreendia, deixava-me guiar pelas palavras e raciocínio e interiorizava. Passado um tempo algo que não estava à espera aconteceu, começarem a interagir comigo. No passado quando tinha o blogue essa situação nunca tinha ocorrido mas agora estava a ser diferente. Ingenuamente e inicialmente pensava que as pessoas estavam a gostar do conteúdo que eu escrevia - algo que me fazia sentir acolhida porque conforme já referi inúmeras vezes, sou uma pessoa um pouco introspectiva e alguém se identificar com as minhas publicações era como um passo que tivesse a dar para sair do meu lugar de conforto.
Estava tudo a correr bem, de manhã caminhava, chegava a casa escrevia, depois dedicava-me aos afazeres de casa, pintava, lia e descansava. Comecei a criar laços com algumas pessoas, laços virtuais, ao mesmo tempo que aos poucos começava novamente a sair com os meus amigos. Algo que não acontecia durante o período que tive com a depressão onde me afastei de toda gente. Estava bem, aos poucos a construir degrau a degrau.
Na altura comecei-me a dedicar a outro tipo de arte, as mandalas. E na altura teve todo o sentido, estava num período de introspecção, os padrões repetidos das mandalas ajudavam-me a treinar as linhas, as cores e a entrar em estados de relaxamento e criação. Acolhi inúmeros sentimentos que residiam em mim e exprimia-os nas obras. As mandalas fizeram-me muito bem e ainda hoje as crio, com muito menos frequência que antigamente. Elas faziam-me ancorar os meus pensamentos, ouvi-los sem julgamento e entrar em estados de meditação que não conseguia alcançar com as meditações convencionais. Era como se os meus pensamentos me passassem na cabeça e aos poucos, sem julgamento, os ouvisse e cada vez que os ouvia, compreendia e deixava-os ir.
Não saia muito ainda, sabia que me tinha afastado um pouco das minhas amizades e que elas tinham as suas vidas, com os seus trabalhos. Aos poucos comecei a criar laços na internet, projectava o carinho e preocupação que tinha pelas pessoas e formava amizades online. Chegava a ficar preocupada com as pessoas quando elas não apareciam ou não diziam nada. Agora que vejo as coisas com mais frieza, foram tudo projecções, como eu era na vida real espelhava no universo virtual. Mas conforme hoje sabemos, a internet não é a mesma desde há muito… E foi algo que eu aprendi e compreendi com o tempo. Deparei-me com situações que me passavam ao lado, situações de ver o pior lado das pessoas e o problema é que cada vez mais via esse lado, o que me fez recuar nas publicações que fazia, conteúdos que postava, pensamentos que partilhava. A determinada altura apaguei aquele espaço e dediquei-me a textos fora do contexto virtual, comecei a ler mais e aproveitar mais a vida, e a dedicar-me um pouco mais a mim e á minha terapia que aos poucos começava a obter resultados.
"Toda a obra de arte é filha do seu tempo e, muitas vezes, a mãe dos nossos sentimentos."
Wassily Kandinsky
Irina Marques
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