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Foto do escritorIrina Marques

O começo - páginas da vida III

Atualizado: 31 de out. de 2022

Começou por ser um sonho e, permaneceu um sonho, sempre será um sonho…


Um dia nas consultas, não passou muito tempo de as começar a ter, perguntaram-me o que eu gostava de fazer. Difícil conseguir discernir o que gostamos de fazer quando estamos num estado depressivo, mas automaticamente respondi - pintar. Engraçado que se tivesse que procurar outra coisa que gostava de fazer não a conseguiria encontrar, mas, a pintura saiu como algo automático, estava cá dentro como que fechado num compartimento à espera de ser solto e verbalizei.

Estava estritamente proibida de trabalhar durante dois meses, inclusive de tomar decisões, tudo que envolvesse pensar estava fora de questão. Apenas me deram uma única tarefa, vais pintar, e daqui a quinze dias trazes-me o que pintaste. Talvez aí tenha acendido uma pequena chama em mim, aquele pequeno gritinho que estava cá dentro manifestou-se e apoderou-se de mim.

No final da consulta fui para casa e não tardou muito a começar a fazer a minha tarefa, primeiro peguei na tela grande que tinha atrás da porta já há dois anos, mas pensei: “como é que eu vou levar isto para o consultório?”, tinha que arranjar outra solução. Olhei para os cadernos de folhas para pintura a acrílico e óleo de formato A3 e pensei: “ora, aqui está uma coisa leve de se transportar”. Não foi muito complicado pensar no tipo de desenho que havia de fazer - árvores. Claro que tinham que ser árvores, as últimas obras que tinha elaborado tinham sido árvores, elas sempre carregaram um significado muito especial para mim. Mas, eu não queria apenas árvores, queria algo mais elaborado, algo mais simbólico. Estávamos no final de inverno, e lá fora as árvores estavam despidas, o meu cérebro encontrou um significado nessa simbologia. Quando a árvore está nua, está vulnerável (era como me sentia nas consultas), mas tinha que ter onde me agarrar, a geometria sempre me acompanhou, creio que como forma de sentir que estou agarrada a algo estável, seguro. Sem pensar muito no assunto, pintei a árvore desfolhada e apliquei apenas duas cores numa composição circundante geométrica.

Não demorei muito tempo a compor e acabar a obra, foi uma questão de dias, até porque não me esquecia que estava estritamente proibida de pensar, logo isso envolvia os meus estudos. Ao observar a obra apenas um nome me vinha à cabeça “Soltar correntes”, era tão estranho porque, por mais que tentasse encontrar outros nomes não conseguia, aquele nome fazia todo o sentido para mim.

Sempre fui muito má em arranjar nomes para as minhas telas, por norma aqui sigo um pouco a intuição, o primeiro que me surge é o que fica e com o tempo aprendi que isso tem muito sentido porque observo a obra, o que estava a sentir quando a criei e por norma eles coincidem ao contrário do que acontece quando tento procurar algo mais profundo ou sei lá… É o primeiro nome que me vem à cabeça que fica.

Após realizar aquela tela algo tinha despertado em mim, não sabia bem o quê, mas senti necessidade de fazer outra. Uma coisa era certa, não podia fazer mais nada, estava estritamente proibida, podia fazer apenas o que eu gostava de fazer. Peguei na minha tela maior e numa folha, sim, porque esta situação de fazer várias coisas ao mesmo tempo sempre me acompanhou e é algo que ainda hoje acontece (contudo mais controlável). Abri o meu cavalete cheio de pó, porque aos anos que não pegava nele, limpei-o, e coloquei a tela enorme em cima dele. Olhar para aquela tela assustava-me, tratava-se de uma tela de 120 x 80 x 4 cm nunca tinha pintado algo tão grande na minha vida, nem na altura que andei em Artes. Primeiro tive que recorrer ao Photoshop para estratificar a obra e como a iria pintar - estava cheia de medo, não queria falhar, não queria errar, queria que as coisas saíssem harmoniosas. Até porque até à data andava a estudar web design e, vinha cheia de regras de como se fazia uma página de web. Não me inspirei em nada particularmente para a fazer, ela saiu de mim, soltou-se.

Quando passaram os quinze dias voltei ao consultório, e ofereci a obra à minha psicóloga. Nunca pintei para ficar com as telas, sempre gostei de as oferecer, desde nova que era assim. E contei a minha aventura com as tintas e as telas, também lhe referi que tinha começado a escrever. Ela achou por bem eu o fazer, incentivou-me a continuar. Disse-lhe que tinha pela frente uma tela enorme, ficou relutante… ela queria que eu descansasse. Pôs-me a questão: “sentes-te bem a fazê-la?". Disse-lhe que sim, sentia-me muito bem, era como se fosse algo que me sentia livre e bem. Deu-me luz verde para continuar.

Todas as vezes que ia às consultas reparava que a minha obra estava lá, numa mesa que ela tinha onde decorava com todas as recordações que os seus pacientes lhe tinham oferecido, um pedacinho meu tinha ficado com ela. A minha árvore estava bem acolhida e não podia estar em melhor local..

Hoje em dia olho para a obra que lhe ofereci, a qual ela me disse que emoldurou e expôs no seu consultório e sinto… Foi um soltar de correntes sim, o primeiro nome que a minha intuição disse estava mais do que certo - um soltar das correntes que me prendiam, um soltar das minhas emoções das amarras que tinha contidas dentro de mim e foi ali naquele espaço que eu ficava vulnerável como a árvore, essa representava a minha procura na vida, os galhos, os caminhos que tomavam e cresciam e as duas cores, a contenção, as amarras das quais eu teria que cada vez retirar. Para além de que representava o soltar de todas as minhas correntes artísticas. A sua simbologia era muito profunda, inclusive abordava temas que tinham ficado ali, naquele consultório, e estavam bem guardados.


Irina Marques

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