Fale um pouco agora, por favor, sobre a influência que essa observação tem na sua obra.
Eu tenho inúmeras influências nas minhas obras e quanto a esta em particular creio que já vim a desenvolver um pouco como essa influência se manifesta. Começamos pelo Soltar dos Gatos, com a variante de Brincadeira de Gatos ou Cat’s Playground, esta obra marcou um período muito específico da minha vida foi como se tivesse que visitar os meus compartimentos e dar-lhe um novo significado, levar com mais leveza, observar mas esta obra não fica só por este significado, ela possui muitos outros subjacentes, alegorias e manifestações expressas. Tentamos agora olhar a obra e associá-la a um contexto social ou comportamental, a obra já ganha novos horizontes, certo? Eu costumo sempre falar desta obra em primeiro lugar porque foi a “grande obra” que me levou ao restante foi elaborada depois de uma outra oferecida intitulada de Soltar correntes, creio que o nome diz tudo e com o historial que vos disse sobre a minha depressão… Vejamos, Soltar correntes, também pode ser visto no contexto social. Quando estamos formatados a algo, completamente presos, sem capacidade de pensar fora da caixa (usando este nome clichê) e de repente descobrimos que há muita coisa mais, sentimos a necessidade de mudarmos a situação em que nos encontramos. Mas ainda há mais significados, não teria tempo de fazer esta abordagem em cada uma das minhas obras.
A obra mais antiga que tenho aqui é uma obra de 2009, intitulada de Confusão Mental, ao observarmos a tela e o nome, creio que diz tudo, é uma obra abstracta. Eu uso muito a abstração para a representação de sentimentos porque, vejamos, existem emoções que não dão para representar, podemos fazer uma obra mais ou menos realista e atribuir-lhe um nome mas aquelas emoções mais profundas que queremos falar serão sempre subjugadas pelo que estamos a ver. Um período que recorri à abstracção foi quando fiz o Caminho de Santiago de Compostela, que aconselho a fazer, aí pensei como representar alguns sentimentos e emoções pelas quais passamos e não temos figuração para as pintar? Como por exemplo, quando alguém é retirado da sua cidade, país, lugar de residência (onde conhece tudo) e de repente se vê noutro lugar? Essa emoção, o sentir-se deslocado, como representar isso? A abstração serviu-me de resposta. Ou ainda, como representar aquela emoção em que ouvimos algo que nos revolta, passamos por períodos de contenção (como foi o caso da pandemia) e não expressamos? Essas palavras, atitudes, comportamentos reprimidos? Como representar isso? Surge então a obra Contenção e Fragmentação, por de certa forma, quando contemos as nossas emoções, elas serão expressas de outras formas, fragmentadas. Todos nós temos sentimentos muito comuns a todos, a forma como os tratamos é que pode diferenciar, a forma como reagimos.
As suas obras se encerram em si? Como você enxerga o papel do público diante delas?
Para mim, uma obra que se encerra em si mesma não comunica nada e eu espero que as minhas obras não tenham esse efeito no espectador. Como diria Kandinsky, uma galeria em que o espectador apenas considerasse as obras bonitas ou feias e essas obras se tornassem “arte pela arte” e não trouxesse algo de novo ao espectador isso não seria o meu objetivo. Eu poderia-me encerrar em casa, deixar esta exposição decorrer sem esta sessão solene e esta entrevista (confesso que estaria muito mais confortável se assim o fosse) mas que traria de “novo”? E até posso nem trazer nada de novo mas explico que as minhas obras, realmente não são estáticas. Se eu não tiver um observador que as veja, aprecie, ou não - porque vejamos só o gostar ou não já provocou uma reação em quem olha a obra.
Antigamente, e isto agora em título de curiosidade, porque lá está, são processos que vamos construindo e aprendendo. Como dizia, antigamente, quando eu pintava algo ou desenhava e a pessoa não via aquilo que eu queria expor e via uma coisa totalmente diferente, ficava ofendida, punha-me a pensar que tinha que melhorar porque a dita obra não tinha passado aquilo que eu queria, ficava sem dormir, vejam só o tormento! Depois com a minha mania da perfeição para além de não acabar a obra, não deixava ninguém ver.
Isto tudo foi um processo, um desprender, comecei a achar curioso como as pessoas observavam o que eu pintava e, o que podia ser para mim, não era para um outro alguém, as pessoas complementavam as minhas obras, elas próprias faziam-me ver coisas e ângulos que eu não tinha observado anteriormente, o meu pensamento modificava-se as “minhas” obras, tornavam-se histórias das outras pessoas. Aos poucos, com o sentimento que refletiam nas obras eu conhecia um pouco a pessoa em questão, via outros mundos, outros universos, via a vida dessa pessoa, suas crenças, seu raciocínio, sua cultura e o contexto social em que vivia.
Acho que um artista plástico é um observador exímio do mundo porque sabe que qualquer coisa que observe é pura ilusão, eu quando era nova, escrevia imenso sobre isso (até me cheguei a considerar louca), achava o que o mundo era uma espécie de Matrix (usando agora um termo mais contemporâneo). Numa pintura, tudo pode ser reduzido a formas com pequenos toques de ilusões por cima e cria-se uma obra, com perspectiva, com luz/sombra, etc… O observador quando olha para a tela, vê essa composição toda e observa o produto final. Eu quando olho para a tela vejo as imperfeições que ficaram no caminho, a linha que podia ter sido melhorada e não vejo o mesmo que o observador vê, devido a ser perfeccionista eu abandono a obra, esta foi uma frase usada por Leonardo da Vinci que faz muito sentido na minha cabeça. Portanto, é sempre bom receber essas informações sejam elas positivas ou negativas porque não vemos todos as coisas da mesma forma. Isto é muito conforme a comunicação inquietante, não comunicamos todos da mesma forma, não é?
Hoje em dia, o público completa a minha obra, e se não vêem o que eu quis transmitir não faz mal, porque a partir do momento em que alguém a interpreta, complementa com a sua informação. Muitas vezes as obras não falam assim tanto sobre mim, até considero que elas falam muito mais sobre o observador em questão, e isso é muito gratificante.
Termino por dizer que esta é a minha comunicação inquietante, que nunca sei, se a minha mensagem foi passada e assimilada correctamente, tudo isto faz parte da mesma. Sou uma pessoa demasiado introspectiva e pouco assertiva e sempre preferi escrever, desenhar, pintar a ter que falar, mas existem alturas que quer se queira quer não tem que se expor, e que estranho seria um artista com “receios” de se expor… Mas acontece…
Poema
Procura-se
de Irina Marques
Durante muito tempo calei o meu eu
tanto que lhe perdi o rasto
coloquei um cartaz a dizer - procura-se
mas no fundo
não saberia dizer o que procurava.
Procurava-me a mim?
Quem era eu?
Procurava o que os outros viam em mim?
Não admira que eu andasse em fuga…
Fugi para todos os lados,
fiz viagens incríveis ao presente com traços do passado
ao passado onde aconcheguei o presente
tranquilizei o meu futuro.
Desci os meus níveis de expectativa ao mínimo
deixei de esperar, não em termos de tempo
mas a nível de imaginar que as coisas iriam ser de uma forma
e tornavam-se noutra.
Mas é claro, caminho à beira do precipício
pois bater mais fundo do que não ter expectativa
é não viver,
controlo a minha vertigem.
Sem expectativas, tudo que vem, é sempre a somar.
Assumi meu fracasso
deixei de querer ser o que não sou
passei a ser quem sou realmente
vivo em poucos momentos lúcidos
porque faço refúgio na minha imaginação.
Assim, fujo
dos compromissos aborrecidos
das realidades estreitas
das regras da razão
refugio-me na abstração
da palavra e do que ela quer dizer
em todos os sentidos,
sentidos…
E assim, voltei a perder-me de mim
de tanta fuga e refúgios
não fiz morada em lugar nenhum
e bem que me posso procurar
mas enquanto não aceitar
que sou, assim,
um ser em constante mutação
posso colocar todos os cartazes
criar todas as frases
que nunca vou achar.
Um dia encontrei alguém que me disse quem eu era
e eu não sabia se acreditar
talvez fosse, talvez não talvez…
Uma questão é certa e sabida,
se me perguntarem quem sou
não sei identificar,
sou uma, sou tantas
e tenho um universo ao meu olhar.
perfeita não
e não me comparo aos outros
verbalizo o que sinto
e esse pequeno transtorno
ficou no passado
deixando com ele
todos os medos e ansiedades.
Entrevista dada na Biblioteca Publica de Barcelos
dia 08.04.2023
Comments