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Foto do escritorIrina Marques

O Caminho de Santiago - Minhoto Ribeiro V

Atualizado: 24 de ago. de 2022

Chegamos á casa da São, em Melgaço, e havia parado de chover, a questão que se pôs foi, nesse dia fazer o troço do caminho de Melgaço a Cevide (fronteira com Espanha), consistia em 14 kms, iria ser então uma preparação para o restante caminho que iremos trilhar, cerca de mais de 20 kms por dia para conseguirmos fazer todo o caminho em apenas seis dias.


1ª etapa - Melgaço - Cevide - aproximadamente 14 kms


Preparei-me para a caminhada, não via grande dificuldade em fazer 14 kms, naquela zona fazia-se bem, não era um trilho de grandes subidas e descidas, iria ser junto à margem do rio Minho, seria o nosso pano de fundo da caminhada, pelo sopé da montanha. Uma mochila pequena chegaria para essa tarde de caminhada, eram cinco da tarde, contávamos ter acabado por volta das sete, preparei a minha roupa e sapatos para andar à chuva e seguimos. Deixamos o carro em Cevide e o companheiro da São deixou-nos em Melgaço, neste dia faríamos assim, estávamos perto da casa deles não havia necessidade de pernoitar fora.

Ao chegar a Melgaço, fomos direitas à igreja paroquial para receber o nosso primeiro carimbo oficial. Eu já falei destes carimbos no supermercado mas esclareço melhor a sua finalidade, estes carimbos, são como marcas de como fizemos o caminho de Santiago de Compostela, adquirimos a credencial do peregrino na Sé de Braga e durante a caminhada vai-se carimbando os espaços de forma a comprovar onde estivemos e passamos naquele local durante o percurso, é uma forma engraçada de interagir com as pessoas e familiarizar com os locais. Serve também como comprovativo para depois adquirir a Compostela. Esta credencial já vem de tempos antigos, tem origem na Idade Média, funcionava como salvo-conduto, deveria ser carimbada pelo menos duas vezes ao dia nos últimos 100 kms da caminhada. Esta credencial é como funcionasse como comprovativo que estávamos a fazer o caminho, em situações de alojamento e restauração tínhamos uma espécie de passaporte.

Quando nos dirigimos à paróquia falamos com o padre do local ele achou curioso nós fazermos o percurso e referiu que não havia muita gente a fazê-lo, desejou-nos “Bom caminho” e iniciamos a nossa jornada por dentro das aldeias tão características da região que ficam situadas nas montanhas com seus campos tão característicos, para árvores e legumes e para as tão famosas vinhas da região, onde o vinho Alvarinho predomina como marca deste território. Melgaço situa-se na zona mais noroeste de Portugal, considera-se o concelho mais a norte do país é uma de suas “finisterras”, pertence à região do Minho e faz parte do distrito de Viana do Castelo. As suas fronteiras são definidas a norte pelo Rio Minho, a este pelo Rio Trancoso e a sul pelo Rio Castro de Laboreiro, a oeste pelos concelhos de Monção e Arcos de Valdevez. De Melgaço a Santiago de Compostela são cerca de 150 kms.



Sinalização do percurso do Caminho Minhoto Ribeiro (ainda do lado de Portugal)


Seguimos a sinalização, o caminho encontra-se todo marcado, e as paisagens verdejantes acompanhavam o nosso percurso, o terreno era montanhoso, conseguimos observar as plantações de culturas de regadio de milho, feijão e abóbora e tão famosa vinha acompanhou-nos todo o percurso, embora as vinhas ainda não estivessem a florescer, ainda era cedo encontravamo-nos em Abril.

Andamos cerca de quinze minutos e começou a chover, muito ténuamente, aquele tipo de chuva que paira pelo ar e ainda não forma gotículas. É claro que o tempo não se iria manter assim avizinhava-se uma chuva cerrada.

Dos apontamentos tirados no dia em que fizemos este troço anotei no meu diário:


"Primeiro dia, estava tudo contra a viagem... Foi um teste de perseverança e resiliência. Foram apenas percorridos 14 kms a chover sem cessar. Encontrava-me preparada para as intempéries, sabia que num ou outro dia iríamos apanhar uns chuviscos, não contava era com a chuva cerrada. Sim, foram 14 kms muito sofridos de pés molhados/encharcados, condensação na roupa, ainda molhei a minha credencial toda. Mas foram esses mesmos quilómetros que me fizeram apreciar andar à chuva, algo que já não fazia à muito, sentir as gotas de chuva no corpo, contemplar as árvores de onde caíam os pingos - a chuva a tocar na natureza proporciona uma sonoridade melódica muito particular, algo que apenas os ouvidos mais atentos conseguem captar. A vegetação envolvente de vinhas, campos e casas em granito pontuavam o espaço visual, foi uma preparação muito envolvente e apreciada. Um dos momentos auge deste percurso foi ver um cervo no nosso caminho, nunca tinha visto um cervo na natureza, mesmo fazendo regularmente caminhadas no Gerês, nunca tinha visto ao vivo. Já tinha encontrado vestígios mas o prazer de ver aquele animal ali, trouxe-me algo muito intenso, inexplicável, apesar de chover a cântaros a natureza ainda nos oferecia detalhes únicos de observar."


Conforme referi na entrada, não demorou muito até começar a chover cerrado, felizmente estava preparada, tinha levado roupa impermeável e um boné. O boné teve histórias engraçadas, porque ninguém entendia o porquê de estar o tempo de chuva e eu andar de boné, mas havia uma explicação óbvia - infelizmente como tenho que usar óculos devido à miopia, era uma forma prática de fazer com que as lentes não se molhassem. Fazer o caminho não é desfilar nem se preparar como se anda na cidade, é usar o calçado mais prático e gasto, a roupa mais confortável, e todos os acessórios desnecessários deixá-los para trás. Nunca me importei se ficava bem ou mal, se estava bem ou mal vestida, o caminho é nosso e temos que ir da forma que nos é importante e relevante apenas a nós, ir confortável e saber que o conseguimos fazer é a melhor forma. É o contacto mais intimo que podemos ter, deixar para trás tudo o que fantasia e atrapalha, tudo o que decora e mascara e apenas ser e estar confortável.

A chuva cada vez começou a piorar mais e mais, chegamos a um ponto que a frustração de ter saído de casa tomou posse de nós, pouco víamos da paisagem, púnhamos os pés em lamaçais e vegetação toda molhada e a roupa, já não aguentava e a condensação começava a formar-se - entre o frio exterior e o calor corporal a roupa começou-se a molhar por dentro também. A determinada altura, o arrependimento tomou posse de nós, mas não tínhamos como voltar atrás nem como nos virem buscar, a única alternativa era seguir em frente em direção a Cevide. Quando entramos na situação de desespero a parte humorística surgiu, foi a melhor forma de lidarmos com a situação, não havia outra hipótese, ou nos riamos de nós próprias e com a situação que estávamos a passar ou caíamos numa grande angústia e desespero, optamos pela primeira.

A determinada altura cruzamo-nos com uma senhora perto de uma casa, curiosamente era uma conhecida da São e, paramos um pouco a falar com ela. Perguntou-nos o que andávamos a fazer à chuva, claro que qualquer pessoa na sua sã consciência não andaria no meio daquela chuva toda. A são explicou que estávamos a fazer os caminhos de Santiago de Compostela e que o percurso passava ali, perguntou também se faltava muito para chegarmos a Cevide. O prognóstico da senhora não foi muito positivo “Para Cevide? Vocês vão para Cevide? Isso é muito longe. Ainda devem andar para aí uma hora.”

No nosso imaginário esta resposta não seria possível, já havíamos passado tanta molha e os meus pés já pisavam almofadas encharcadas que quando a senhora nos disse tal resposta ficamos escandalizadas. A frustração tomou posse de nós, e ainda andamos mais uns quilómetros a dizer mal da nossa vida, mas que podíamos fazer? Encaramos esta situação como um teste, e tínhamos que cumprir o objectivo, chegar a Cevide.


Pequeno registro do troço que passamos no meio das montanhas.


Fomos apreciando a florestação no caminho, os terrenos com pinheiros e eucaliptos acompanhavam-nos na viagem pelas terras verdejantes escarpadas e irregulares, com parcelas de terra cultivadas todas elas de tamanhos pequenos aqui a população ainda vive maioritariamente dos seus campos.

Fizemos uma pequena pausa, altura em que reparei que a minha credencial estava toda molhada, as suas folhas já se encontravam coladas umas às outras, tive que fazer uns ajustes, secar um pouco a humidade e condensação. Ao contrário de mim a São não tinha levado nada impermeável, encontrava-se completamente encharcada. No decorrer da pausa observamos que ainda faltava percorrer meio caminho. Creio que aqui o meu cérebro desligou de pensar se estava a chover ou não, aproveitei para pensar que não era todos os dias que andava à chuva, era só uma pequena molha no meio de um ambiente demasiadamente bonito. E assim fiz o resto do caminho, olhando em redor e apreciando a paisagem, ouvir a chuva a bater nas folhas das árvores, as cores que a natureza possuía com a humidade, sentir os meus passos no meio da vegetação, as folhas e os galhos a quebrarem cada vez que punha o pé no chão. Respirar fundo e sentir o cheiro dos eucaliptos e terra molhada, tão diferente do habitual cheiro a poluição que respiramos na cidade, muitas vezes já sem darmos conta. Ouvir os pássaros a cantar um pouco, nesta ou naquela árvore, não se ouviam carros nem barulhos humanos, só a chuva. A determinada altura começou a ser relaxante. A partir do momento em que comecei a apreciar aquele momento, o caminho tornou-se mais suportável, inclusive vi uma corça, nunca tinha visto uma na natureza e o nosso espanto foi tão grande que ao soltarmos uma interjeição de admiração, espantamos a corça…

Quando nos encontrávamos a chegar a Cevide, encontramos um outro senhor debaixo de um guarda chuva que resolveu meter conversa connosco, o senhor era de uma simpatia incrível a questão é que não se devia ter apercebido que estávamos à chuva, nesta altura gostaríamos muito de ter continuado a conversa com ele mas o objetivo era chegar ao carro e dirigir-nos para casa para tomar um banho quente.


Irina Marques

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