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Foto do escritorIrina Marques

O Caminho de Santiago - Minhoto Ribeiro VI

Atualizado: 12 de set. de 2022

Escrever sobre o caminho é difícil, porque desperta inúmeros sentimentos que não conseguem ser traduzidos em palavras, sentimentos esses, que só são digeridos passado muito tempo. Foi devido a isso que não consegui falar sobre ele logo após, o tempo que passamos na jornada como eremitas trazem-nos revelações muito profundas, daí muitos dos relatos dos peregrinos, são poucas as pessoas que percorrem os caminhos e não tem “revelações”, na falta de melhor palavra.

Logo após o primeiro dia, ao chegar a casa, pusemos as nossas roupas a secar junto à lareira que a São tinha acendido. As minhas sapatilhas eram autênticos colchões de água e encontrava-me preocupada porque iria precisar delas para o dia seguinte, era previsto chuva novamente e era o único calçado que tinha para essas condições. A roupa também se encontrava encharcada, os impermeáveis não tinham resistido a tanta chuva, tinha-me molhado toda na mesma.

Mas o sentimento de ter chegado a casa e tomado um banho de água quente foi gratificante, assim como o saber que tínhamos conseguido passar o primeiro desafio, faltava os restantes dias, 14 kms eram fáceis de percorrer embora não com a chuva que presenciamos, foi deveras desmotivador mas ao mesmo tempo gratificante. Ao jantar comemos um bife de posta barrosã tão característica daquela zona e bebemos um vinho para festejar e inaugurar o nosso percurso.

À noite, na cama, tomei anotações dos dia, os desafios e as aprendizagens foram pequenas entradas escritas em diário para não me esquecer de alguns momentos e situações e, neste dia, houve algo muito importante - a corça. Apesar das condições climatéricas, poder ver aquele ser na natureza foi algo incrível, tão inesperado e surpreendente e eu gosto destas surpresas positivas, despertam-me muita felicidade, são aquelas que menos esperamos e nos espantam pela positiva, é algo genuíno. Não foi permitido tomar grandes notas porque tinha que descansar, o dia seguinte iria ser duro e o sentimento que a qualquer momento podia desistir continuava presente na minha cabeça, mas naquela noite sentia-me bem.

No dia seguinte acordamos cedo, não tão cedo quanto a São gostava, confesso que nessa noite queria dormir bem para poder aguentar os restantes quilómetros que tinha pela frente, deveriam ser nove horas quando acordamos e numa grande pressa (relativa, porque ainda me encontrava com muito sono) preparei-me para a segunda parte do caminho.

Neste dia bastava levar uma mochila pequena porque o companheiro da São iria-nos buscar na recta final do percurso, como ainda nos encontrávamos relativamente perto de Melgaço, iríamos novamente lá dormir. Desta vez, na minha mochila, não poderia faltar música, seriam longos quilômetros, e algo que nunca pode faltar a acompanhar é boa música é ela que me consola em momentos desoladores e em que o tédio pudesse aparecer ou alguma outra emoção menos positiva.

Fomos tomar o pequeno almoço a Melgaço e levamos umas sandes para o almoço durante o caminho. Sabíamos que grande parte deste caminho Minhoto Ribeiro não iríamos encontrar estabelecimentos para nos abastecer de comida ou mesmo cafés ou restaurantes. Era um caminho ainda muito primitivo, sem grande suporte a peregrinos, e nas pesquisas elaboradas antes de o fazer tínhamos chegado à conclusão que seria melhor levar comida. Algo que não pesquisei muito antes de ir foi por onde íamos passar em Espanha, sabia que andaríamos por meio de montanhas e vales mas as características da região ou o que veríamos era totalmente desconhecido para mim, preferia o factor surpresa. Queria algo feito como uma exploração, em todos os sentidos. Daí muito destas memórias não conterem grande informação sobre a região, essa foi uma pesquisa feita após o caminho a título de curiosidade.



Neste segundo dia o percurso seria Cevide - Cortegada - Ribadavia, seriam o total de 26 quilômetros: de Cevide a Cortegada eram 14 quilômetros; Cortegada a Ribadavia eram 12.6 quilômetros. A minha cabeça questionava: Estaria eu preparada para este desafio? e ainda continuava a afirmar que a qualquer momento iria desistir, era um esforço muito grande. Tentava contornar estas questões de outras formas, formas que foram muito revigorantes para mim.

O tempo não se apresentava muito risonho, eu e a São havíamos combinado que se neste segundo dia estivesse a chover como choveu no primeiro não faríamos o caminho, tinha sido chuva a mais e apreciar a paisagem e usufruir da caminhada seria impossível. Apesar de não se encontrar sol, não chovia, resolvemos então pôr o pé na estrada, começando então a nossa jornada no marco número 1 de Portugal, em Cevide.


Seguimos o caminho que em tempos era considerado do contrabando, onde eram trocados produtos entre Portugal e Espanha e, logo atravessamos a fronteira, deixamos para trás Portugal, o caminho agora seria todo feito em Espanha, atravessamos o rio Trancoso que delimita a fronteira e entramos nas povoações e aldeias de A Frieira.


Houve um sentimento de emoção de começarmos a fazer o caminho, oficialmente o caminho estava a começar neste dia - o plano tinha sido começar neste ponto. Começamos então a percorrer as pequenas estradinhas sinuosas desta aldeia, nesta fase do percurso foi um ligeiro subir por entre casinhas de pedra e outras já feitas em tijolo, os muros delimitavam o nosso troço de estrada que se apresentava cimentada e outras vezes em terra. Ao longe víamos uma igreja que pontuava um monte.

Fomos de A Frieira até A Notaria, local onde se encontrava a igreja que víamos ao longe. Aqui, ao fazermos o desvio para irmos visitar a igreja e adquirir um comprovativo de que havíamos passado naquela localidade (carimbo), passamos num alojamento local que referenciava que acolhia peregrinos e carimbava a credencial, as portas encontravam-se fechadas, decidimos ir visitar a igreja. Achamos curioso o facto de a igreja ter em volta da mesma o cemitério, por norma em Portugal as pessoas não são enterradas nos espaços circundantes às igrejas mas sim num sítio específico designado para tal, ali não. Lá em cima, na igreja apercebemo-nos que umas pessoas que se encontravam no alojamento no qual havíamos passado nos fizeram sinal. A igreja era de estilo românico, e dentro encontramos uma senhora com a qual conversamos um pouco, ela disse que para obtermos um comprovativo que havíamos passado ali era melhor nos deslocarmos ao alojamento, após a nossa visita, foi o que fizemos.

Tocamos à campainha e quem nos abriu a porta foi um senhor que no momento se encontrava a trabalhar, viemos a saber que ele se encontrava a melhorar o alojamento. Com grande simpatia disse para nós entrarmos e dirigiu-se à porta dos fundos, chamou por alguém e quem nos recebeu foi uma senhora também muito simpática. Perguntamos-lhe se ali carimbavam a credencial e ela disse que sim, pediu que nós entrássemos. Havíamos começado há pouco o percurso e estávamos com o tempo um pouco limitado, tínhamos o objectivo de chegar a Ribadavia nesse dia e só nos encontrávamos a caminhar a apenas trinta minutos.

A senhora foi procurar o carimbo e entretanto esteve a falar um pouco connosco, disse que tinha aquele alojamento à pouco tempo e estava a preparar-se para receber peregrinos, andava a melhorar um pouco o espaço. Perguntamos se era habitual passar ali muita gente e ela disse que de momento não, com o confinamento dos anos anteriores, passavam ali pouquíssimas pessoas e que este caminho que nos encontrávamos a fazer era pouco divulgado mas que com o tempo acreditava que mais gente o faria.

Após nos carimbar a credencial perguntou-nos se queríamos tomar um café, aproveitamos, sentamo-nos um pouco no espaço comum, uma sala muito ampla com espaço de bar/café, com tv e uma lareira e a senhora serviu-nos dois cafés. Estivemos a falar um pouco sobre o caminho e sobre o albergue. Ficamos então a conhecer a Carima, a Patrícia e a pequena Larissa. A menina estava a ver os desenhos animados e naquele momento tinha acontecido algo que a deixou muito triste na história dos seus personagens, tinha mesmo se sentido incomodada, e começou a chorar. Nessa altura registramos o momento no albergue Caserio Retoral Desteriz, onde tiramos uma fotografia com as pessoas tão acolhedoras que nos haviam proporcionado um momento tão amigável. Este seria o nosso primeiro encontro com diversas pessoas extremamente afáveis que conhecemos no caminho e que infelizmente teríamos que prosseguir e deixar para trás.


Por Irina Marques

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