Obviamente que temos na cabeça o comprimento de horários, tarefas, metas, objetivos. Mas para mim esses processos nunca funcionaram e isso passava-se desde nova quando me passavam os ditos trabalhos de casa, nunca os fazia e no dia seguinte lá tinha eu uma notinha na caderneta escolar que tinha que trazer para casa para os meus pais assinarem. É claro que não fazia os trabalhos, para mim andar no colégio que andava era um sofrimento, bullying atrás de bullying, tudo porque não me sabia comportar. E o não saber comportar não se devia fazer algo mal ou ser irrequieta, digamos que na altura - vivia no mundo da lua (talvez ainda viva um pouco). Sou filha única, não tendo irmãos aprendi a brincar sozinha, pensar sozinha, criar mundos imaginários sozinha e, apesar de muitas das vezes encontrar-me com amigos e estar com eles, a solidão sempre se encontrou muito presente na minha vida. Por vezes pensamos em solidão como algo negativo, para mim não o é, é nela que por norma assento os meus pensamentos turbulentos e me faz ver as coisas com mais clareza.
Hoje em dia, todos sabemos que andar na escola e sofrer de bullying, dizem os “entendidos” faz as crianças crescer, todos nós passamos por isso, ao qual eu refuto e respondo que se levassem com reguadas todos os dias sem entenderem o porquê, fossem insultados constantemente por grupos e não tivessem como se defender, passassem vergonhas em frente aos colegas que ainda fazia com que essa vergonha crescesse mais e, em adulto ainda se lembrassem disso vividamente, cresceriam cheio de receios, medos, sentiam-se nulos e não mais "rijos, fortes e populares" (usando uma comparação que não faz sentido na minha cabeça). Para acrescentar a isso, as diversas mensagens dirigidas aos meus pais de “é distraída, devia-se esforçar mais” reforçam a auto-estima de uma criança, não é? Ainda para mais numa criança que o seu desenvolvimento não era igual ao das crianças ditas normais. Ser popular era sinónimo de ser alvo de atenções e, no meu caso, era sempre algo negativo - ora para insultos ora para levar porrada na casa de banho.
Cada vez que chegava a casa o meu único objectivo era ir para o meu mundinho e que o pensamento saísse daquele lugar horrível onde passava humilhações. Não era não ter vontade de fazer os trabalhos que tinha, era como, se desligasse dali e preferisse criar algo ou fazer algo onde me sentisse bem, onde aquelas pessoas não interferissem, havia sempre algo mais interessante do que me dedicar aquela obrigação. Talvez se essa obrigação tivesse algum tipo de recompensa no final, algo positivo, até ajudaria, mas provavelmente iria chegar à escola no dia seguinte e diziam que estava tudo mal feito (como aconteceu inúmeras vezes). Obviamente a motivação ia para o tecto.
E claro está, com a afirmação destas palavras, crescemos com a tentativa de alcançar o perfeccionismo, esforçamo-nos mais, queremos mais de nós, qualquer coisa que se crie somos os primeiros a ver os seus defeitos e a não dar valor ao esforço que dispensamos naquele assunto/ofício. Ainda hoje me deparo com este problema nas minhas obras, quando sinto que a cor, ou a linha ou há ali qualquer coisa que não bate certo na minha cabeça, a obra falhou. Curiosamente as pessoas que me rodeiam dizem que está muito bom ou excelente, mas eu sinto sempre que não, não consigo olhar a obra na sua totalidade, mas sim como algo defeituoso - podia ter feito melhor - palavras que me acompanharam sempre durante a minha vida.
Hoje em dia já consigo os observar de outra forma, sei que obviamente não estava no mesmo pé de igualdade que as outras crianças e, não que eu não fosse competente ou não aprendesse, deveria era ter aprendido de outras formas, hoje em dia já se tem atenção a quando alguém tem déficit de atenção não são postos de parte, alguns professores já têm alguma formação ou atenção a saber lidar com crianças assim e é bom que desde cedo se trabalhe com as emoções e parte emocional das crianças, que se entenda que a sua aprendizagem é diferente, que elas são atenta, por vezes até mais atentas que outras mas a sua atenção é seletiva.
No decorrer da minha vida ainda antes de ser diagnosticada, arranjei alguns mecanismos que me faziam ser produtiva porque tinha perfeita noção que algo que era entusiasmante hoje, amanhã não iria fazer, nem depois, nem depois, nem depois… Então, cada vez que me atribuíam uma tarefa fazia um esforço “sobrenatural” (quem vim a saber que se tratava de hiperfoco) enquanto estava entusiasmada, pesquisava informação, ia a bibliotecas, falava com investigadores, recolhia o máximo de informação possível e começava logo os trabalhos. Em três, quatro dias, tinha trabalhos quase que elaborados - trabalhos esses que supostamente durariam um mês a fazer. Entregava os trabalhos, sempre com receio porque sabia que havia sempre algo a melhorar ou aprofundar (perfeccionismo) e quando saíam as notas incrivelmente tinha excelentes notas. Nunca entendia porque davam tanto tempo para se fazer determinados trabalhos, mas fundamentalmente o que eu não entendia é que tinha hiperfoco, o que me suscitava interesse dedicava-me de viva alma ao assunto.
Olhar para trás e observar estes comportamentos, agora mais friamente, consigo entender inúmeras situações, depois de me educar no que é TDAH, tudo fica muito claro. E ainda mais claro é que nunca fui distraída, apenas o meu foco estava noutras situações. Nunca fui desinteressada, apenas alguns assuntos não me despertavam interesse, nunca fui preguiçosa, apenas quando algo não nos interessa focamo-nos noutras situações - e sim, durante muitos anos estes "rótulos" acompanharam-me, e eles eram transmitidos à família, amigos e conhecidos.
Curiosamente, já na altura da minha infância que tudo o que fosse artes, música ou teatro me despertavam um interesse sem precedentes, era como se fosse absorvida para uma outra realidade, um universo à parte - o meu universo. E foi esta minha veia que a minha psicóloga nas suas consultas me despertou, a minha parte criativa e expressiva que necessitava urgentemente de ser solta.
E agora o leitor questiona, porque é que ainda falo nisto? São águas passadas, o passado não é modificado. Ou melhor, sou muito infantil a falar de determinados assuntos, também foi algo que eu já ouvi. Se sou, adoro o ser, o próprio Picasso tem uma famosa frase "Todas as crianças nascem artistas. A dificuldade é continuar artista enquanto se cresce." E acrescento algo que Kandinsly refere "A multidão percorre sala a sala, considerando as telas «bonitas» e «sublimes». Aquele que poderia ter transmitido algo ao seu semelhante nada disse, e quem poderia ter entendido, nada percebeu", os meus textos são exatamente isso, a tentativa de alertar uma sociedade para casos individuais e ter-se em conta que esses casos não são mais nem menos, são apenas diferentes e eles estão na nossa sociedade, convém ter em conta que nem todos sentimos da mesma forma e no meu caso sempre senti demais, sofri demais, e aprofundei demais. Para mim, a arte serve para passar uma mensagem porque sempre foi a forma que encontrei de manifestar os meus pensamentos e sentires. E se o estou a fazer bem? Nunca tive tão certa de que sim. Porque cada vez que pinto, cada vez que escrevo sinto que passei a mensagem e liberto-me aos poucos de pesos que carrego, e aí existe um aprofundamento de pensar, por parte do observador.
Irina Marques
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