A ideia
Tudo começa sempre com uma pequena ideia, alguém sugere - e se? e, do outro lado, pensa - e porque não?
Certo é que, naquela tarde de Inverno ninguém iria imaginar o que uma pequena sugestão após um passeio poderia dar. Raquel e Sara encontravam-se na casa de retiro de Sara e foram fazer um pequeno passeio a Cevide. Nesse passeio pela natureza foram visitar o marco número um do seu país e aproveitaram para dar um passeio pelas redondezas, sentir um pouco o ambiente natural envolvente daquela localidade ainda muito rústica. Aproveitaram e passaram a ponte para o lado de Espanha enquanto admiravam o percurso sinuoso do rio Minho. Foi nessas andanças que ao olhar o percurso repararam que se encontravam num dos caminhos de Santiago, marcação que aparecia pontuada nas estradas que se encontravam a trilhar.
A ideia passou pela cabeça das suas mas mantiveram-se em silêncio, deram uma volta pelos campos envolventes ainda em Cevide e após este passeio recolheram-se à casa de Sara, já perto de Mirandela.
Não tardou muito até ambas olharem uma para a outra e manifestarem aquilo que lhes tinha passado pela ideia.
- E se fizéssemos o Caminho de Santiago? - Perguntou Sara.
- E porque não? - Respondeu Raquel.
Surgiu então a ideia que ficou a pairar no ar, para uma altura que ambas tivessem disponibilidade de o fazer.
A fomulação
Já há muito tempo que a ideia de fazer um retiro passava pela cabeça de Raquel. Já há muito que pensava em ir uma temporada para a beira mar sozinha com o intuito de organizar a sua cabeça, acalmar os seus pensamentos. Não necessariamente ir para a praia, podia ser as montanhas, que também era algo que também gostava, ou para um lugar qualquer afastado. Por vezes, ela sentia essa necessidade, escapar, sair de lugares muito movimentados e ir para sítios onde pudesse estar sozinha para estar à sua vontade. Viver uns dias sem horários a ditar o dia, onde pudesse comer quando tivesse fome, deixar a sua cama por fazer, não estar em contacto com ninguém e, acima de tudo, longe do telemóvel e tecnologias, para acalmar os seus pensamentos que eram como flechas que apareciam com grande rapidez. A ideia de uma caminhada com tantos quilômetros parecia uma boa alternativa. Ela precisava de se encontrar a ela própria, conhecer-se um pouco mais, um trabalho que já vinha a fazer há algum tempo. Sempre gostou de estar num espaço isolado mas com a proximidade de outras pessoas, mas neste momento, precisava urgentemente de se isolar e pensar em rumos da sua vida. Tinha passado por dois anos de grandes alterações, tinha realizado alguns dos seus sonhos, contudo, outros objectivos tinham ficado para trás. Era esse desprendimento que ela procurava.
A problemática
É claro que quando nos preparamos para fazer algo diferente enfrentamos sempre inúmeros problemas, Raquel era experiente nesse assunto, já sabia que o seu maior inimigo ia entrar em ação. Tinha lidado com ele a vida toda, mas também havia aprendido a conviver com ele e já o conseguia acalmar.
Os caminhos não era algo fácil de fazer, eram numerosos quilômetros que teria que enfrentar pela frente, dias e dias a fio a caminhar por vales, estradas, beira rios, montanhas, mas Raquel já tinha a preparação para essas andanças - físicas e mentais. Considerava as mentais as mais fáceis de contornar, sempre foi assim, cada vez que havia um problema sabia usufruir de todo o questionamento que a sua mente lhe criava, não se limitava às barreiras que ela lhe impunha. Quanto à parte física, era uma questão de preparação, mas também era algo que ela já se havia habituado, todos os dias caminhava muito e nos fins de semana fazia montanhismo. E enquanto a sua aliada, a parte mental, estivesse consigo, tudo era possível.
Sabia que Sara tinha o mesmo espírito, ambas partilhavam de muitas questões em comum e, sabiam que a qualquer momento, se houvesse aquela pequena brecha para a dúvida a outra iria incentivar. Ambas partilhavam de algo que falta a muitos - coragem e determinação - e isso foi sempre o que lhes valeu na vida. O arriscar a saber que depois teriam uma bela experiência partilhada e vivida para contar.
Jornada quase que impossível
Raquel sempre quis, tirar um tempo para si própria percorrer os seus caminhos, necessários ao seu entendimento. Muitas vezes o que ocorria era, ao percorrer esses caminhos duvidosos, que por si só já eram uma incógnita muitos, lhe diziam - não vais conseguir, a jornada é difícil, tens a certeza que o queres fazer?
Foram exatamente estas mesmas palavras de incerteza, dúvida, insegurança que ouviu quando se manifestou que iria, sim, iria percorrer os caminhos de Santigo de Compostela. A típica preocupação (onde vais ficar, tens a certeza, vais aguentar,...), não houve uma viva alma que lhe dissesse - vais conseguir. Teria só que contar consigo própria.
Sobre a escolha dos caminhos, não iria fazer o mais conhecido, mais trilhado, não. Raquel e Sara sempre gostaram de aventuras, de ir ao desconhecido, partilhar experiencias únicas foi isso que as levou a escolher aquele caminho especifico (algo que nem os peregrinos usuais conheciam) queriam a experiencia genuína e não a comercial. Uma coisa que ambas partilhavam era a sua chama - fogo era o elemento de ambas - coragem, força de vontade, determinação, espirito de aventura, persistência Se alguém lhes dissessem que não iriam conseguir, era quando conseguiriam mesmo, superavam-se.
Raquel encontrava-se numa fase da sua vida que necessitava profundamente fazer este caminho, a sua vida estava prestes a mudar, tudo que havia lutado nos últimos quatro anos estava a tornar-se realidade - uma surrealidade - um consciente que se cruzava com o inconsciente e se traduzia atos e exposições. Sempre foi muito ligada à simbologia, a um sexto sentido que não era muito nítido, facto era, que a sua confiança nesse sentido tinha dado resultados. A sua luta era diária. Agora, nos caminhos iria pensar bem na sua vida, já tinha deixado para trás muito do que não era pra ela e, sentia-se mais leve. Os caminhos eram conhecidos por isso mesmo, levar consigo somente o essencial, deixar para trás aquilo que não lhe pertencia, as dúvidas estavam nesse fardo. Era altura de perceber se valeria a pena continuar a seguir algo que nunca lhe disse nada, continuar a insistir em algo que nunca quis saber, se o seu tempo (algo valioso demais) que se encurtava estava a ser devidamente investido. Ela sempre se quis superar, a si própria, tornar-se melhor de dia para dia, entender, perceber a sua jornada, estes caminhos seriam sem dúvida uma pagina na sua vida, um capitulo que lhe daria para escrever um livro de aventuras vividas e experienciadas.
Pensava para consigo que poucas eram as palavras de incentivo para fazer estas jornadas, mais depressa as pessoas demonstravam graus de preocupações que não se identificavam com ela mas sim com os interlocutores - onde vais ficar? Terás onde te abastecer? E se não aguentares? Poucas palavras de incentivo ouvia, e no fundo, era só e apenas isso que precisava. Fazer mais de 150 kms em seis dias, só precisava de força de espirito, de alma e conforme pensava, deixar muito para trás - especialmente materialidade, algo que nunca lhe encheu as medidas.
Uma coisa teve sempre na sua mente nos caminhos de Santiago, primeiro, são eles que nos escolhem a nós, segundo, o que faltar, eles providenciam.
O caminho dos caminhos
Caminhos há muitos, verdade, qual caminho a tomar é onde reside a dúvida. Pela costa, pelo centro ou pelas montanhas…
O caminho pela costa era o mais conhecido, começara a ser divulgado por todo o lado e atraia inúmeros turistas estrangeiros, devido à sua baixa dificuldade, boa sinalização e se encontrar difundido por todo o lado. A cada passo havia apoio logístico para os caminhantes, desde cafés, dormidas, lojas, supermercados, ali, passava o Caminho de Santiago, que ligava o Porto a Santiago de Compostela.
O caminho central, percorria o centro de Portugal e Espanha, a determinada altura iria como que desaguar no caminho da costa, era o segundo caminho mais conhecido e bem sinalizado, iria passar por vales e algumas regiões com mais montanhas, a dificuldade também não era exagerada, Havia inúmeros caminhantes que optaram por este caminho.
Por fim, havia o caminho ribeiro minhoto que se entrelaçava com o dos areeiros, um caminho muito pouco trilhado pelos caminhantes, não era assim muito conhecido nem divulgado, ele ia de Braga, subia o Gerês ou Melgaço e entrava em Espanha ora por Cevide, ora por a Portela do Homem, havia variações. Devido à sua pouca divulgação, este era o caminho que se encontrava pior sinalizado e com menos suporte logístico, contudo, era o caminho que mais aliciava Sara e Raquel. Ele era inteiramente dedicado à natureza verdejante, rios e ribeiros, termas, vinhas, vales e montanhas o que era uma ótima altura para o percorrer, visto a primavera ter acabado de chegar. Este caminho entrava nas montanhas e podiam passar períodos sem encontrar qualquer viva alma ou lugar para pernoitar. Os planos, tinham que ser previamente, muito bem definidos.
“Caminhos há muitos, mas numa altura da nossa vida, sabemos que, este, é o caminho a percorrer - o que vai além.”
Irina Marques
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